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sexta-feira, 19 de abril de 2024

Moçambique e a luta pela independência e por uma sociedade socialista

Desde que o português Diogo Cão (nome sugestivo) chegou à África em 1482, o Continente vem sendo saqueado pelos países imperialistas. A África foi retalhada pelos europeus: França, Inglaterra, Alemanha, Portugal, Bélgica, Itália e Espanha. A Moçambique, Vasco da Gama chegou em 1498. Em 1505, os portugueses já haviam dominado toda a região costeira.

Os movimentos nacionalistas africanos surgiram na década de 50. Em Moçambique, um passo fundamental se deu em 1962, no dia 25 de junho, com a criação da Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo), união de vários grupos nacionalistas articulados pelo doutor em Literatura, Eduardo Mondlaine, que foi o seu primeiro dirigente. Mondlaine foi assassinado em 1969, num atentado preparado pela repressão portuguesa com o apoio de traidores, que lhe enviaram um livro dentro do qual se encontrava um artefato com alto teor explosivo.

Escolhido para dirigir a Frelimo foi Samora Moisés Machel, um enfermeiro, poeta e lutador incansável, que gozava de intensa simpatia entre todos com os quais se relacionava.

Em que cenário se desenvolvia essa luta?

Um povo escravizado

Durante muitos anos, a principal atividade econômica desenvolvida pelos colonizadores foi o tráfico de escravos. Moçambique forneceu os bantos para as plantações de cana-de-açúcar do Brasil. Com a nossa independência, proclamada em 1822, Portugal passou a priorizar suas colônias africanas implantando uma estrutura econômica voltada, naturalmente, para atender aos interesses da metrópole.

Sob o domínio português, o povo moçambicano vivia sob a mais extrema opressão. O colonialismo provocava e incentivava os conflitos entre etnias e grupos. Na capital, Lourenço Marques (Maputo, depois da libertação), havia o bairro dos índios, o dos pretos, o dos portugueses pobres, o dos portugueses médios, o dos portugueses ricos. Essa divisão se espalhava por todo o país, entre camponeses e indígenas, entre nortistas e sulistas.

“Conduziam jovens do interior, como gado, nos caminhões e colocavam-nos para servir os colonizadores em regime de trabalho escravo. Lourenço Marques virou cidade da marginalidade, da mendicância, da prostituição oficializada. De um lado, o cimento, a opulência, o brilho. Do outro lado, a insegurança, a injustiça social, a discriminação, a pobreza, a escuridão da miséria”

“Toda a indústria concentrada nas mãos dos colonos. O moçambicano era empregado subalterno, simples executor, produtor desprezado, servente servil e sem dignidade, motorista sem categoria, operário anônimo, construtor da riqueza”.

Estabelecer o poder Popular e servir às massas

Em 1964, teve início a luta armada e no ano seguinte a Frelimo já controlava o Norte do país. Além das próprias forças, contava com o apoio da União Soviética e de outros países do bloco socialista.

Nas regiões liberadas, os revolucionários procuravam pôr em prática o seu lema “Estabelecer o poder popular e servir às massas”. No campo econômico, o poder popular criou a produção coletiva a serviço do povo e da revolução; transformou os produtores individualistas em produtores integrados na coletividade.

Sob o funcionamento do Governo Popular: “Os que exercem o poder, discutem continuamente com as massas. As novas orientações, as novas diretrizes vêm das discussões e da experiência (prática) das massas e são assumidas por elas mesmas para serem aplicadas. Nossas decisões devem ser sempre democráticas no conteúdo e na forma. No conteúdo, por corresponderem aos interesses reais das massas; na forma, porque as amplas massas devem participar da elaboração da decisão, senti-la como sua e não imposta de cima para baixo. A decisão burocrática, isto é, tomada pura e simplesmente pela direção, sem que haja debate com as massas, embora possa ter um conteúdo excelente, não mobiliza as massas, arrisca-se a não corresponder ao seu nível de compreensão. Ao trabalharmos, devemos ter sempre em mente que o poder pertence ao povo. Os dirigentes devem ser exemplo de dedicação, honestidade, disciplina, e nunca pregar uma coisa e fazer o contrário…Um dirigente que recusa ter calo nas mãos, pode fazer centenas de reuniões sobre a produção e isto não levará ninguém a produzir e não organizará uma única cooperativa”. (S. Machel)

As dificuldades para aplicação da linha são imensas porque há tradições arcaicas características do sistema de castas e falsos valores do colonialismo, do capitalismo; mulheres com sua iniciativa tolhida por milênios de opressão; bancários, comerciários, advogados, economistas e outros profissionais de nível médio, bem como funcionários públicos eivados de mentalidade pequeno-burguesa; operários com fraca consciência de classe e ainda incapazes em assumir seu papel dirigente no processo de transformação da sociedade.

Mas todos procuram a Frelimo porque não suportam mais a opressão e acreditam que a organização é capaz de transformar a sociedade moçambicana e proporcionar-lhes uma vida nova. A Frelimo decide aceitar todos que a procuram, “transformar a massa enorme, diversa e rica, a todos integrar e transformar em servidores do povo”.

Para promover a reeducação dessa massa que se incorpora à luta revolucionária, criam-se centros educacionais, aplicando uma metodologia baseada na reflexão da ação e no estudo da realidade do país e do mundo. A quarta sessão do Comitê Central define como objetivos “popularizar a linha para que seja assumida e vivida pelas amplas massas, democratizar os métodos de trabalho e implantar o sistema de direção coletiva”. Para isso, além da reeducação, a Frelimo organiza a massa em setores, com ênfase para as mulheres. Em 1973, realiza-se a Conferência das Mulheres Moçambicanas com a finalidade de engajá-las nos mais diferentes níveis de luta. Em seu pronunciamento durante a conferência, após saudar as companheiras e fazer um resgate histórico da opressão das mulheres como parte da sociedade de classes, declara Samora Machel: “…Homens e mulheres são produtos e vítimas da sociedade exploradora que os criou e educou. A nossa experiência tem provado que os progressos obtidos na libertação da mulher resultam dos sucessos obtidos no combate comum contra o colonialismo e o imperialismo, contra a exploração do homem pelo homem, pela construção da nova sociedade”.

O papel da juventude moçambicana na luta foi de fundamental importância, até porque 70% do povo moçambicano eram formados por jovens de idade inferior a 25 anos. Desde a luta política até a luta armada, foi decisiva a participação juvenil. É Samora Machel quem relata: “Nós vimos jovens no trabalho clandestino de mobilização do nosso povo, distribuindo panfletos, organizando grupos de estudo, participando de todas as formas possíveis. Entre os inumeráveis mártires, foram muitos os jovens vidas em defesa dos interesses do povo”.

Entretanto, só depois do triunfo da revolução é que a Frelimo criou o Secretariado Nacional da Juventude com a tarefa de organizar os jovens em nível nacional e com a certeza de que só organizando a juventude seria possível vencer a batalha da edificação da nova sociedade, consolidar a independência nacional, construir o socialismo.

“Longe de ser um passo definitivo, a tomada do poder é apenas o início do processo de transformação da sociedade.” (Lênin)

Samora Machel tinha plena consciência dessa realidade afirmada por Lênin. Em 1974, o colonialismo desmorona. O seu exército já estava praticamente derrotado, quando a Revolução dos Cravos, em Portugal (A Verdade, n.º 60), dá-lhe o golpe final.

Em 25 de junho de 1975, é reconhecida oficialmente a independência de Moçambique. Agora, a Frelimo está com o poder nas mãos.  O que fazer?  Pouco antes da vitória final sobre o império, uma conferência tinha revelado a existência de duas linhas. Uma, que defendia uma primeira etapa de consolidação da independência e desenvolvimento econômico capitalista, para que o povo pudesse viver a luta de classes da burguesia contra o proletariado e, assim, se conscientizar da necessidade de construir o socialismo, vez que até agora, por mais que se debatesse o assunto, o móvel da luta tinha sido a libertação nacional. A outra linha, na qual se inseria Samora Machel, entendia que era preciso se lançar desde já na construção do socialismo, realizando as transformações democráticas de forma revolucionária.

Esta foi a linha vitoriosa. A primeira Constituição da República não deixa dúvidas: “Na República Popular de Moçambique, o poder pertence aos operários e camponeses unidos e dirigidos pela Frelimo” (art. 2º). E no artigo 4º, entre os objetivos da República, define: “Edificação da democracia popular e a construção das bases materiais e ideológicas da sociedade socialista”

O desafio é grande para colocar em funcionamento a economia e a máquina administrativa numa perspectiva socialista. Os colonizadores fugiram, levando os técnicos, inclusive os moçambicanos cooptados. O Estado, só aos poucos foi adquirindo a técnica para fazer funcionar a produção agrícola capaz de abastecer as cidades. Para se ter uma ideia, em 1980, a produção de algodão alcançou apenas 1/3 do que era produzido no período colonial. O poder popular realizou a reforma agrária, priorizando a instalação de grandes fazendas coletivas e apoiando a pequena produção, a agricultura familiar de subsistência.

Dificuldade maior dá-se na indústria, dada a inexperiência dos moçambicanos. Tarefa primeira é vencer a batalha da produção. Samora faz esse apelo aos operários, mas não é fácil, pois isso exige consciência para submeter-se aos sacrifícios da jornada extraordinária sem benefícios materiais em troca. As ideias da classe dominante ainda predominam nas massas urbanas. Trava-se uma intensa batalha ideológica. A ideologia burguesa do colonizador é agora o inimigo principal.

Na comemoração dos cinco anos da Revolução, Samora Machel faz um balanço do que fora construído até então, dos obstáculos a transpor e das tarefas que se colocam na edificação da nova sociedade.

Realizações: “Libertamos a terra; nacionalizamos a educação – a escola deixou de ser privilégio; nacionalizamos a dos; extinguimos a justiça privada – a Justiça deixou de ser uma mercadoria; nacionalizamos os prédios – as cidades passaram a pertencer àqueles que as construíram”.

Dificuldades e obstáculos: “A mentalidade do colonizador instalou-se em nosso seio – indisciplina, roubo, anarquia, preguiça, inércia, imobilismo, desleixo, sabotagem, nepotismo”. E mais: “O que foi herança colonial agora é nosso produto. É ao inimigo interno que declaramos guerra”.

A luta continua para: “Devolver-nos a dignidade, a personalidade e a cultura moçambicana. Construirmos uma nova sociedade, uma nova mentalidade, um homem novo”.

A burguesia não se contentou com a força de sua herança. Armou uma guerrilha de direita, chamada Resistência Nacional Moçambicana (Renamo), financiada especialmente pelo regime racista da África do Sul.

Samora Machel morreu em 1986, prematuramente. Num desastre aéreo, que nunca foi devidamente apurado. Sob o comando do seu sucessor, Joaquim Chissano, a Frelimo foi se deixando dominar pela mentalidade do colonizador. Primeiro, reintroduziu a agricultura privada, de mercado, e foi cedendo em outros aspectos até abandonar completamente o socialismo em 1990. Em 1992, firmou acordo de paz com a Renamo.

Hoje, Moçambique vive a situação característica dos países dependentes, com sua classe dominante sendo sócia menor do imperialismo, a economia entregue às multinacionais e regida pela batuta do Fundo Monetário internacional (FMI).

Quanto ao povo, a miséria é generalizada. De acordo com o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) da ONU, Moçambique ocupa o quarto pior lugar no mundo. Mais de metade da população sequer dispõe de banheiro em suas casas, sem contar os que não têm casas. Meio milhão de pessoas passam fome. A expectativa de vida caiu de 46 para 27 anos devido à proliferação de epidemias, entre as quais a da AIDS

Mas10 nos de luta armada e 10 anos de luta incessante para construir o socialismo não podem ter sido em vão. Tanto para Moçambique como para todos os explorados do planeta, continua valendo a certeza exposta por Samora Machel no discurso pronunciado em 1980, intitulado Declaramos Guerra ao Inimigo Interno:

A Luta Continua!

A Revolução Vencerá!

O Socialismo Triunfará!

Luiz Alves

Obras Consultadas:

Declaramos Guerra ao Inimigo Interno, Samora Machel, editora Quilombo, São Paulo, 1980
Estabelecer o Poder Popular para Servir às Massas, Samora Machel, edições Frelimo, 1974
Moçambique, reportagem da jornalista Marilene Felinto

Publicado em A Verdade número 62

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3 COMENTÁRIOS

  1. Adorei o texto. Rico em detalhes e com uma linguagem acessível, o relato mostra a todos que Moçambique, assim como outros paíse africanos, foi explorado e reduzido a praticamente nada.
    Além de tudo isso, quem lê este conteúdo sofre uma grande expansão em sua visão de mundo. Gostei muito de ter tomado conhecimento da situação atual deste país. O que li também fez com que meu respeito pelos povos africanos aumentasse. PARABÉNS !

  2. Um bom texto. Gostei da mensagem final. Embora nem todos os factos sejam correctos. Para alem de uns outros, a escravatura ja tinha comecado em Africa muito antes dos portugueses la chegarem.. Os Arabes ja faziam mercadoria de escravatura ha muito tempo antes dos colonizadores portugueses, assim como conversao do islamismo. No paragrafo comecando por “Dificuldades e obstaculos” , nao posso de maneira alguma concordar que Mocambique antes da Independencia fosse assim. Mas esta assim agora…
    A ideologia de Samora Machel, esse grande lutador pela justica das massas e impecavel. Infelizmente, quase impossivel, pois o ser humano e complicado! E so muitos poucos darao o seu melhor para todos beneficiarem.

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