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terça-feira, 19 de março de 2024

A pedagogia de José Martí

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Carlos Rodríguez Almaguer é professor licenciado em estudos socioculturais, poeta, pedagogo e historiador, chefe do Centro de Informação do Instituto Cubano de Amizade com os Povos (Icap) e vice-presidente da Junta Nacional da Sociedade Cultural José Martí. Durante sua presença em Porto Alegre, para participar de um evento em relação aos 160 anos de nascimento de José Martí, o jornal A Verdade o ouviu sobre a contribuição de Martí para o pensamento latino-americano. 

A VerdadeFale um pouco sobre a vida de José Martí e a vigência de suas ideias.

Carlos Almaguer

Carlos Rodríguez Almaguer – Neste ano de 2013, estamos comemorando seu 160° aniversário de nascimento. Em janeiro deste ano, em Havana, realizou-se a terceira Conferência Internacional José Martí pelo Equilíbrio do Mundo, que teve a presença de mais de 100 mil participantes de 65 países, entre eles historiadores, poetas, lutadores sociais, professores, dirigentes políticos, personalidades da cultura motivados pela vigência do pensamento de José Martí à luz do qual se analisaram os principais problemas de hoje. E qual é o segredo deste pensamento que se gestou num espaço breve de 42 anos da segunda metade do século XIX, período no qual viveu Martí? Ele nasceu em 28 de fevereiro de 1853 em Havana e morreu, em um combate diante das tropas do governo colonial da Espanha, em 19 de maio de 1895, nos campos do oriente cubano, em um lugar chamado Dois Rios.

Creio que o segredo da total vigência do pensamento de Martí está em que ele não se ateve à época em que viveu nem às condições específicas da pequena ilha em que nasceu, e sim que se concentrou no essencial do ser humano. Ele acreditava que o ser humano é o mesmo em toda parte, e a isso chamou de Identidade Universal do Homem. E as épocas mudam, as sociedades mudam, a ciência e a tecnologia se desenvolvem, e o homem continua sendo o mesmo. Desde o começo até aqui não temos revolucionado nada. Nossas preocupações continuam basicamente as mesmas, nossas potencialidades são as mesmas, nossos defeitos e limitações continuam os mesmos, de maneira que esta pedagogia de Martí não trata de organizar a sociedade de maneira específica, mas de melhorar o ser humano para, assim, termos sociedades melhores. Creio que a vigência do pensamento de Martí e seu pensamento pedagógico está também no fato de que ele foi um homem de inteligência multifacetada. Foi poeta, escritor, roteirista, jornalista, narrador, tradutor, político, filósofo, diplomata. Martí utilizou essa inteligência multifacetada para formar um homem melhor.

Por todas estas vias, Martí transmitiu sua mensagem pedagógica. Eram mensagens basicamente éticas. Não eram mensagens políticas nem ideológicas. Porque, acima das posições ideológicas, das posições políticas e dos modos de fazer política, há uma moral universal, há uma ética humana que convida à luta pela justiça social. A ideia de que o homem seja irmão do homem, a ideia de que os homens ajudem aos demais homens está na base de todas as políticas, de todas as ideologias e de todas as religiões que os homens conheceram. Por isso a mensagem de Martí vai à essência, que trata de fazer um ser humano melhor, que ajude aos demais seres humanos e os veja como iguais e não como seus competidores, muito menos como seus inimigos.

A crise principal de que padece nosso tempo não é econômica, não é política, não é ideológica, não é nem sequer uma crise de fé, porque cada dia que passa há mais religiões, cada vez há mais partidos políticos, cada vez há mais proposta de modelo social e econômico. A crise principal de nosso tempo é ética. É uma crise existencial humanística, e eu creio que a mensagem humanista de José Martí é profundamente ecumênica e tem total validade para resolver os problemas do mundo de hoje: a intolerância, o fanatismo, o sectarismo, a falta de ecumenismo para entender outras culturas, outros pensamentos, outras filosofias, outra espiritualidade, se quiser chamar assim, porque não é o mesmo espiritualidade e religiosidade.

Martí disse que o ser humano tem que ter uma espiritualidade, porque o ser humano sem espiritualidade não passa de ser essa criatura biológica que nasce, um animal a mais da natureza. Deixemos a questão da religiosidade a um problema de consciência individual. Que o homem seja o depositário de todo o conhecimento mundial produzido até o dia em que nasce, que lhe sejam dado os conhecimentos essenciais e a liberdade de escolher a religião que quiser, a filosofia que quiser, o sistema político que quiser. De maneira que a falta de ecumenismo, a falta de capacidade e sensibilidade para escutar e entender o outro, são os temas que o mundo tem que superar para garantir a existência mínima da espécie.

Martí, ainda na segunda metade do século XIX, já estava prevendo que o homem tinha que viver em harmonia com o seu semelhante, e o conjunto dos seres humanos com a natureza. Eu creio que esta é a vigência de Martí, muito claro para resolver os problemas que existem dentro de nossos povos, entre nossos povos e de nossos povos com outras culturas. Agora mesmo há uma discussão sobre a guerra na Síria. Se tem buscado fabricar um consenso, manipular a opinião pública, satanizar uma cultura diferente da cultura ocidental. E quem estudou um pouquinho de História sabe que, para além de satanizar as diferentes culturas, compreensões políticas e filosóficas, é de interesse dessa guerra o petróleo que há embaixo do território do Oriente Médio. É nesse sentido que falamos dessa mensagem ética, humanista, harmoniosa e ao mesmo tempo radical. Radical porque vai na raiz, na essência dos problemas. Creio que esse pensamento tem muito a aportar aos desafios que enfrenta o ser humano em pleno século XXI.

Qual a relação que você faz entre Martí e Paulo Freire?

O método de pensamento cubano diz: “Todas as escolas e nenhuma escola. Esta é a escola”. E os cubanos, desde o século XIX, estamos abertos às distintas propostas pedagógicas, políticas e filosóficas que se tem feito em todo o mundo. O projeto social cubanoé um projeto pensado por professores e não por políticos, militares ou filósofos. Tinham uma máxima: “Tenhamos as escolas e Cuba será nossa”. Porque o presente e futuro de qualquer país estão na escola. Martí dizia que “uma escola é uma forja de espíritos”, mais que um lugar de instrução. As pessoas têm muitos talentos, muitos, muitos talentos. Mas mais que talento, necessitam de caráter. Por isso, ao talento natural que temos como seres humanos, há que se forjar o caráter. Porque a inteligência sem caráter pode se tornar uma espécie de talento que vai contribuir às coisas mais espantosas. A inteligência humana tem produzido um enorme conhecimento nos distintos ramos da ciência, das artes, da filosofia, que deve ser utilizado para o bem de todos os seres humanos. Porque esse conhecimento acumulado é patrimônio de todos os seres humanos. Não é patrimônio exclusivo de uma elite.

Sem dúvida, o mundo nos ensina que todo esse conhecimento acumulado tem sido usado em benefício de uma minoria, enquanto a imensa maioria segue alheia, sem direitos, sem usufruir de todo esse conhecimento. E, quando muito, lhe é permitido usufruir de uma pequena parte desse conhecimento. Por exemplo, toda a ciência que se acumulou na agronomia permite que a produção de alimentos seja cada vez mais barata e, sem dúvida, são mais numerosos os que padecem de fome, porque esse conhecimento científico não é utilizado em benefício dos demais. Por isso Martí disse que “a escola não deve se dedicar somente a instruir conhecimentos, mas deve dedicar-se principalmente a dirigir os sentimentos”. Porque a humanidade não necessita só de homens e mulheres inteligentes, necessita sobretudo de homens e mulheres bons, generosos, solidários. Essa é a que nós chamamos de Pedagogia da Ternura de José Martí, que diz que o ser humano necessita sobretudo da ternura, que a ternura é a chave para abrir a alma dos seres humanos.

E com essa Pedagogia do Oprimido, de Paulo Freire, essa problematização do ensino, essa maneira que ele genialmente disse que “ninguém se educa só”, é que as pessoas se educam umas as outras, e Martí lhe põe um componente essencial que vai mais além da mera instrução, da mera fabricação consensual de um conhecimento. Martí lhes põe a ternura. O modo como nós, seres humanos, nos ensinanos a despertar afetos, a despertar sensibilidade não se produz de maneira isolada, mas só se produz quando estamos juntos. Por isso, que ele diz que o segredo da condição humana está em sua faculdade de associar-se.

Então creio que aí estão os dois complementos: a maneira com que Paulo Freire concebe a organização e a construção de conhecimento desde o intelectual e da maneira que Martí concebe a mesma construção de conhecimento, mas também a construção de relações espirituais entre os homens. A estes dois componentes de uma pedagogia latino-americana contribuiriam muito outros professores latino-americanos do século XVIII, como Simón Rodríguez, que afirma que Simón Bolívar havia deixado em seus escritos pedagógicos: “A nossa América é original. Originais devem ser seus métodos e instituições. Portanto, o nosso desafio é: ou inventamos, ou erramos”.

E com esta contribuição, tanto de Martí, de Paulo Freire como de outros pedagogos latino-americanos, vê-se que o método pedagógico latino-americano deve estar aberto ao melhor da pedagogia de todo o mundo. Nós não utilizamos só os cubanos, mas Freire, componentes pedagógicos de Makarenko e outros pedagogos russos que também têm muito a aportar à pedagogia universal, porque acreditamos que o homem é o mesmo em toda parte. Tratamos de adequar à realidade cubana o melhor de toda a pedagogia. Não devemos copiar um método pedagógico trazido de um lugar e transplantá-lo de maneira esquemática a outro lugar. Cada método tem seus acertos utilizáveis para todo o mundo e tem suas especificidades aplicáveis apenas para os lugares onde nascem. A sabedoria dos pedagogos latino-americanos está em adequar todos esses métodos às particularidades de cada país onde se vai educar o ser humano para viver.

 Redação Porto Alegre

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