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sexta-feira, 19 de abril de 2024

Lei de Anistia conforme o Pacto de São José da Costa Rica

Cartaz AnistiaO Brasil tem um acerto de contas a fazer com o seu passado ditatorial – passado este ainda tão presente no fascismo em voga em nosso país. A ausência de punição aos torturadores e criminosos da época da ditadura iniciada em 1964, e que durou até 1985, é uma violência que se perpetua no tempo em nosso país, como um crime permanente. Durante a transição política no Brasil, no fim da ditadura, a intenção dos militares era controlar e frear o clamor popular por democracia e eleições diretas, negociando uma transição lenta e moderada para um regime não autoritário e evitando a investigação dos crimes cometidos pelo regime. Foi neste contexto que nasceu a lei de anistia com sua dúbia e contraditória aplicação. Por um lado, perdoava os que haviam cometidos os chamados crimes políticos, opositores da ditadura e combatentes contrários ao Estado facínora e opressor, por outro, regulamentou a impunidade de torturadores e assassinos daqueles que ousaram desafiar os estreitos limites impostos pelo regime, inclusive aqueles que sequer participaram de ações armadas.

Em trabalho monográfico, de Pós-Graduação Lato Sensu, intitulado “Lei de Anistia à Luz da Interpretação Internacional da Convenção Interamericana de Direitos Humanos”, concluído em 2015, analisei a contrariedade da lei de anistia com as normas da Convenção Americana de Direitos Humanos, tratado internacional ratificado pelo Brasil pelo Decreto n° 678, no ano de 1992, pelo então presidente em exercício Fernando Henrique Cardoso. Ocorre que os tribunais brasileiros seguem aplicando a Convenção Americana, também conhecida como Pacto de São José da Costa Rica, de forma equivocada, desrespeitando, inclusive, decisões de sua Corte Internacional, a Corte Interamericana de Direitos Humanos, que já se pronunciou pela invalidade de leis de anistia quando estas se tornarem obstáculos para a punição de agentes de Estado responsáveis por crimes contra a humanidade. Segundo decisão da referida Corte Internacional, durante o julgamento de caso de assassinato de militante durante a guerrilha do Araguaia (“Gomes Lund e outros vs. Brasil”), “as disposições da Lei de Anistia brasileira que impedem a investigação e sanção de graves violações de direitos humanos são incompatíveis com a Convenção Americana, carecem de efeitos jurídicos e não podem seguir representando um obstáculo para a investigação dos fatos do presente caso, nem para a identificação e punição dos responsáveis, e tampouco podem ter igual ou semelhante impacto a respeito de outros casos de graves violações de direitos humanos consagrados na Convenção Americana ocorridos no Brasil”.

No mesmo sentido, se pronunciou a Corte Suprema da Nação Argentina, em decisão histórica, no ano de 2005, durante o julgamento do caso “Simón, Julio Héctor e outros”, considerando indevida a aplicação da Lei de Ponto Final (Lei 23.492/86) e da Lei de Obediência Devida (Lei 41 23.521/87), que anistiavam os militares, no caso dos crimes contra os direitos humanos cometidos pelos agentes da repressão argentina: “na medida em que, como toda anistia, se orientam ao ‘esquecimento’ de graves violações dos direitos humanos, elas se opõem às disposições da Convenção Americana sobre Direitos Humanos e do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e são, portanto, constitucionalmente intoleráveis”.

Observa-se, portanto, de acordo com o entendimento da Corte máxima da Argentina, não cabe a alegação por parte de Estado que tenha aderido ao Pacto de São José da Costa Rica e ao Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, caso idêntico ao do Brasil, que existe norma interna a impedir o julgamento de violações de direitos humanos. Eis que os tratados internacionais de direitos humanos fazem parte das normas fundamentais de tais países, e uma afronta a tais leis internacionais se afigura como uma afronta à própria Constituição desses países.

O Estado brasileiro, ainda que de forma tímida, já reconheceu a sua culpa em alguns dos episódios de repressão, tortura e assassinatos, em alguns casos indenizando os parentes das vítimas da ditadura militar. Nada, porém, parece indicar a punição ou prisão de torturadores, pelo contrário. Neste sentido, os tribunais nacionais não tem reconhecido a prevalência dos tratados internacionais de direitos humanos no que se refere à questão da anistia dos militares. Através da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) n. 153 o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) questionou a constitucionalidade do § 1º, do artigo 1º, da Lei de Anistia. O STF, porém, em 2010, julgou improcedente a ação, deixando claro que a referida lei foi fruto de um acordo político o qual permitiu a transição do regime militar para o Estado de Direito, e que “ao Poder Judiciário não incumbe revê-lo. Dado que esse acordo resultou em um texto de lei, quem poderia revê- lo seria exclusivamente o Poder Legislativo”.

A decisão pela improcedência da ADPF n.153, que pretendia uma revisão da Lei de Anistia, entretanto, não significou que a Corte máxima brasileira deixasse de reconhecer a gravidade dos crimes cometidos pela ditadura militar. Na parte final do Acórdão, afirmou o Ministro Eros Graus, relator do processo, que “a decisão pela improcedência da presente ação não exclui o repúdio a todas as modalidades de tortura, de ontem e de hoje, civis e militares, policiais ou delinquentes. […] É necessário não esquecermos, para que nunca mais as coisas voltem a ser como foram no passado”. O referido julgamento teve como votos divergentes os dos Ministros Ricardo Lewandovski e Ayres Britto, que consideraram que os crimes cometidos pelos militares não poderiam ser qualificados como crimes políticos, ainda que por conexão, e, por isso, não seriam objeto da anistia.

Mais recentemente, a Comissão Nacional da Verdade, instituída em 16 de maio de 2012 e finalizada em dezembro de 2014, relatou com grandes detalhes as arbitrariedades e os graves crimes cometidos durante a ditadura militar. Seu trabalho, porém, pouco conseguiu chamar a atenção da sociedade para a discussão da tortura e dos crimes contra a humanidade daquelas décadas. A repercussão na grande mídia, tanto do trabalho da Comissão em si, quanto de seu relatório final, não teve o tamanho e a importância que o assunto merece. Vale destacar, novamente, que os crimes contra a humanidade cometidos pelos militares, e sua impunidade, ainda hoje repercutem nas ações das Policias militares contra a população, especialmente os moradores de periferia, perpetuando uma cultura de tolerância à violência do Estado.

O golpe brando que assistimos no presente também decorre, naturalmente, da falta de apego de nossa elite pelas regras democráticas. De que servem os militares se hoje ela conta com jornais, canais de televisão, membros do Judiciário, promotores, delegados e deputados politicamente engajados? Servem apenas para monitorar os movimentos sociais, como revelou recentemente áudio vazado, inclusive, na grande imprensa. Monitorar, mas sempre dentro da “legalidade”, mantendo a aparência de respeito às leis, sem derramamento de sangue em demasia, mas prendendo e reprimindo manifestações se necessário. A saída para tal situação, porém, depende mais da própria sociedade, especialmente daquela parcela que está preocupada com os rumos da nossa combalida democracia. Um Estado que, ao invés de proteger os direitos humanos, é um de seus principais violadores, não é um Estado verdadeiramente democrático. O povo brasileiro é o responsável por modificar e pressionar os governos em direção a políticas de seu interesse, respeitando valores fundamentais, os quais já estão previstos em nossa Constituição e nos tratados internacionais. A única resposta para um Estado leniente com graves violações é uma sociedade vigilante e mobilizada.

Thiago Andrade de Araújo, Recife

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