A classe trabalhadora brasileira é, historicamente, sofrida; salários baixos, extrema exploração, condições subumanas de vida, etc. Os bons momentos para a classe trabalhadora constituem-se, na História do Brasil, uma exceção. Se assim o é para a os trabalhadores “formais” e “autônomos”, avalie para aqueles que nem ai encontram espaço, aqueles e aquelas que não conseguem emprego por alguma doença crônica, orientação sexual, identidade de gênero ou racismo estrutural e entre outros e são obrigados e obrigadas a ir para a ilegalidade, para o tráfico e para a prostituição. Um grupo considerável dentro desta categoria de “lumpemproletariado” são as pessoas transgêneros e transexuais.
O que são pessoas transgêneros e transexuais? Segundo o Guia Prático de Atualização da Sociedade brasileira de pediatria (2017, p. 2): “A identidade de gênero é uma categoria da identidade social e refere-se à autoidentificação de um indivíduo como mulher ou homem ou a alguma categoria diferente do masculino ou feminino. Pessoas cujas identidades de gênero não correspondem aos sexos biológicos atribuídos ao nascimento são nomeadas como transgêneros ou transexuais. Trata-se de um fenômeno heterogêneo que pode ganhar diferentes coloridos de acordo com a realidade psíquica, social e cultural de cada um.”. E complementa: “Na 5ª edição do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5), a Associação Americana de Psiquiatria (APA), reconhecendo as controvérsias relacionadas à sexualidade, criou uma categoria própria denominada disforia de gênero.”. Ou seja, simplificando o máximo possível, pessoas “trans” (Trangêneros e transexuais) são indivíduos e indivíduas que sofrem de disforia de gênero, isto é, não se reconhecem com seu sexo biológico, porém cada caso é específico, um homem trans (Pessoa que nasceu com corpo feminino, mas não se sente bem nele) pode ter problemas apenas com os seios, assim como uma mulher trans (Pessoa que nasceu com corpo masculino, mas que “sente-se mulher”), se satisfaz apenas em reproduzir gestos mais “femininizados”. São diferentes níveis de disforia, pode-se passar dos exemplos que citei até o processo completo de transição, que envolve reposição hormonal e cirurgia de troca do sexo biológico.
Este grupo de pessoas sofre todo tipo de violência, por vivermos em um país extremamente lgbttfóbico que não aceita “pontos fora da curva” de comportamento no que se refere à identidade de gênero – Isto é, como uma pessoa se identifica (Como homem ou mulher) dentro de um sistema de representações culturais (Ser homem ou mulher no Brasil não é igual a ser homem ou mulher na Arábia Saudita, por exemplo) – o que leva a uma estatística brutal, constatada por Thaís Cunha, em um artigo do jornal Correio Brasiliense em Novembro de 2016: “O Brasil matou ao menos 868 travestis e transexuais nos últimos oito anos, o que o deixa, disparado, no topo do ranking de países com mais registros de homicídios de pessoas transgêneras”. São centenas de pessoas mortas por serem o que são.

A invisibilidade é outra violência sofrida, pois o mercado de trabalho – que não cai do céu, mas surge da materialidade, do conjunto, das relações sociais – reproduz o machismo e os preconceitos do cotidiano, fechando-se para estas pessoas que são, aos olhos dos setores de recursos humanos das empresas capitalistas, “homens invertidos” ou algo assim, condenando principalmente mulheres trans à prostituição e a falta de perspectiva, levando a outro dado nefasto (2017, p. 4): “Sabe-se que os transtornos de humor, transtornos de personalidade, uso e abuso de drogas e ansiedade são mais frequentes entre sujeitos com o diagnóstico de disforia de gênero, quando comparados com a população geral. O comportamento suicida também é maior, independentemente da presença de qualquer comorbidade psiquiátrica”.
Os Partidos Comunistas e organizações proletárias, no passado, não deram importância a esta questão e, no presente, parcelas destes movimentos afirmam que a pauta da transgeneridade e da transsexualidade é “pós-moderna”. Essa abordagem é incorreta, pois ela relega opressões reais e violentas a mera “discussão teórica”, como se o debate acerca das pessoas trans fosse um vício universitário. Sem dúvida que as ideias pós-modernas são reacionárias e devem ser combatidas, porém transgeneridade não é um debate que entra neste guarda-chuva. A hegemonia de filósofos e filósofas liberais no tema é mais consequência do atraso dos marxistas à respeito do que indicativo de que este assunto é “coisa de liberal”.
Rebater a acusação de que estas pautas seriam “coisa de pós-moderno” é fácil e pode ser feita com mera constatação de fatos, afinal a cirurgia de transição de sexo surgiu nos anos cinquenta, com um caso famoso que chamou a atenção dos periódicos estadunidenses, o de Christine Jorgensen, nascida George Willian Jorgensen Jr, ela deixou boquiaberta a sociedade norte-americana ao se submeter ao procedimento, isso em 1952, antes da ascensão Foucault, Judith Butttler, Derrida ou Deleuze. Porém, Christine era de família abastada e tinha acesso a esse avanço da ciência, que não era acessível a centenas de outras pessoas que sofriam de disforia de gênero naquele país e no mundo.
Com o avanço da sociedade através do trabalho e do nível tecnológico, as necessidades fisiológicas e intelectuais tornam-se mais complexas, os padrões de convivência da mesma forma, Lukács (2014, p. 43) percebe: “O próprio desenvolvimento da sociedade, da civilização, cria posturas espirituais em que o ser humano ativo é confrontado com as bases naturais e sociais de sua atividade de maneira dualisticamente excludente.”. Simplificando: O “natural” torna-se social, transforma-se, o ser humano deixa de ser guiado exclusivamente por seu “primitivismo”, pela sobrevivência “simples e pura”, com o desenvolvimento das forças produtivas surgem elementos que tornam mais complexos, dotados de contornos mais subjetivos como papéis de gênero, divisão do trabalho, ideia de valor, etc. “Sua consciência toma lugar do Instinto” (MARX, 2008, p. 35). O que é normal no mundo da natureza não o é no “mundo social”. Assim sendo: Reproduzir o argumento conservador de que “gênero é necessariamente ligado ao órgão genital” é pautar-se sobre um materialismo vulgar, não dialético.
No trabalho os seres humanos transformam a natureza e a si mesmos, suprem suas necessidades e criam novas, através do trabalho as ferramentas e o conhecimento se desenvolvem, o que diferencia a humanidade dos outros animais é a capacidade de transformar seu espaço e seu próprio ser, pois “A moral, a religião, a metafísica e qualquer outra ideologia, bem como formas de consciência a elas correspondentes, são privadas, aqui, da aparência e da autonomia que até então possuíam. Não têm História, nem desenvolvimento; mas os homens, ao desenvolverem sua produção e seu intercâmbio materiais, transformam também, com esta sua realidade, seu pensar e os produtos do seu pensar” (Marx, 2008, p. 94). Por muito tempo a disforia de gênero foi tratada como uma doença, uma condição a se envergonhar, tudo isso devido a força da moral vigente, extremamente machista e lgbttfóbica, mesmo com a ciência tendo avançado a ponto de resolver este problema de forma mais razoável, através de reposição hormonal e cirurgia de resignação sexual. Se estas pessoas sentem-se mal como estão e existem os meios de resolver a situação, por que não deveriam? O problema, definitivamente, não está nelas, mas naqueles que se colocam em seu caminho e as jogam na prostituição e na invisibilidade.
É nosso papel, como comunistas, exercer a crítica e autocrítica, corrigir os erros do passado no presente, através da práxis, da prática da inclusão e da formação revolucionária.