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sexta-feira, 19 de abril de 2024

Irmã Dorothy Stang e a reforma agrária

DOROTHY – Sede por justiça no campo e por Reforma Agrária. (Foto: Reprodução/Arquivo)
“Não vou fugir nem abandonar a luta.”
José Levino

RECIFE (PE) – Ela poderia ter passado a vida lecionando nas escolas da sua Congregação Irmãs de Notre Dame, nos EUA, país onde nasceu na cidade de Dayton, Estado de Ohio, no ano de 1931. Mas refletiu muito sobre sua missão nesta vida e compreendeu que, para ajudar a construir o reino de Deus na terra, precisava agir entre os mais sofridos. Escolheu o Brasil, onde chegou no ano de 1966. Começou sua missão em Coroatá (MA) e dali foi para a Amazônia, instalando-se em Anapu, no Pará, município de 30 mil habitantes (hoje), distante 625 km da capital, Belém. 

A Missão no Meio do Conflito

A escolha não se deu por acaso. O Pará é campeão em conflitos de terra provocados por grileiros e fazendeiros, e o estado mais afetado pelo desmatamento na Região Amazônica. Derrubam tudo para alimentar gado.

Irmã Dorothy nunca esteve à frente de nenhuma ocupação de terra. Seu trabalho era com os assentados, em vista da regularização dos assentamentos e desenvolvimento de projetos de desenvolvimento sustentável, os “PDS”.

Estes projetos consistiam em desenvolver a agricultura preservando a natureza, sem desmatamento ou com o mínimo possível, nunca ultrapassando 20% da área. Nos PDS, as famílias não realizavam apenas atividades econômicas, mas educacionais, formando cidadãos e casando o saber popular com o científico. A cidadania, com base na vida coletiva, na fraternidade, na partilha.

Esse modelo de desenvolvimento enfurecia os poderosos até mais do que o confronto direto das ocupações, pois estas eram enfrentadas com as armas do sistema, com o poder de polícia do Estado. Já as ações coordenadas por Irmã Dorothy, que vivia com os camponeses como peixe dentro da água, no dia a dia, sentindo seus problemas, buscando soluções juntos, bem mais difícil de desfazer. E a preocupação é que a adesão a esse modelo crescendo na região levaria ao fim do sistema de exploração do grande agronegócio pecuário, quebrando a lógica de concentração de renda, riqueza e propriedade.

Para fortalecer a base, Irmã Dorothy não ficou isolada. Vinculou-se à Comissão Pastoral da Terra (CPT). A CPT foi criada em 1975 durante encontro de bispos e padres da Amazônia convocado pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). A missão da pastoral é exatamente buscar solução para situações de trabalho escravo e expulsão de pequenos agricultores das terras onde trabalham.

O trabalho pastoral realizado em Anapu ficou conhecido e reconhecido nacional e internacionalmente, recebendo prêmios de muitas organizações de direitos humanos e defesa do meio ambiente. As ameaças não tardaram e foram se sucedendo ao longo dos anos, sempre denunciadas publicamente, bem como aos órgãos de segurança. Estes chegaram a lhe oferecer proteção, mas Irmã Dorothy respondeu que só aceitaria se a proteção fosse para todas as famílias assentadas, pois ela não era a única ameaçada. Sua proposta não foi aceita.

A Morte Nunca Parou a Luta do Povo

A emboscada aconteceu no dia 12 de fevereiro de 2005. Numa estrada do assentamento, quando ia visitar as famílias, com a Bíblia embaixo do braço, como era do seu costume, foi abordada por dois homens de moto. Um desceu de arma na mão, lhe apontou, e ela, segundo o assassino, abriu a Bíblia e leu um trecho que dizia: “Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça porque serão fartos”. A resposta do pistoleiro foi um tiro na cabeça e vários por todo o corpo.

Foram identificados os mandantes, dois fazendeiros: Vitalmiro Bastos de Moura (Bida) e Regivaldo Pereira Galvão (Taradão). Amair Feijoli da Cunha foi o contratante dos pistoleiros Rayfran das Neves Sales e Clodoaldo Carlos Batista. Devido à repercussão mundial, todos foram condenados a penas que variam de 17 a 30 anos. Mas a sensação na região é de impunidade, haja vista a demora na execução das sentenças, os recursos a tribunais superiores, habeas corpus e liminares, assim como o cumprimento parcial, devido à aplicação da liberdade condicional.

Irmã Dorothy foi plantada no próprio assentamento, próximo ao local do desenlace, entre as árvores, como semente, para também germinar e dar frutos. Os frutos estão na continuidade do PDS Esperança. Alguns moradores saíram, com medo, mas a maioria permaneceu.

A Continuidade

Todo ano, a mártir é lembrada na Romaria da Floresta. Tem como lema “Celebrar o compromisso de defender a vida da floresta, do povo e do planeta” e reúne lutadores/as do Brasil e do exterior. Trata-se de uma caminhada de 55 km, do centro de Anapu até o PDS Esperança, no memorial aos Mártires da Terra e da Floresta, uma cruz na cova da Irmã Dorothy, com os nomes dos/as trabalhadores/as rurais assassinados/as. No caminho, muitos cânticos, paradas com testemunhos, narrações da luta, denúncias e palavras de ordem em defesa da reforma agrária popular e sustentável. No ano de 2021, a Romaria da Floresta não pôde se realizar da forma tradicional, em virtude da pandemia da Covid-19. 

As irmãs Jane Dwyer e Kátia Webester, da mesma congregação de Dorothy, deram continuidade ao seu trabalho. Durante a Romaria da Floresta em 2015, antes do fechamento provocado pela pandemia, irmã Jane disse: “A situação hoje é pior do que quando a Dorothy morreu”. De 2015 a 2019, somente em Anapu, 23 trabalhadores/as rurais foram mortos/as, segundo levantamento da CPT. Mudou o modo de operar. Agora, buscam despistar que os assassinatos sejam por conta da terra, cometendo-os na cidade, passando a impressão de que foi um crime comum, resultante de desentendimento individual. Ficou mais claro que a repressão continua com a prisão e a tentativa de desmoralização do padre Amaro José Lopes, da CPT.  E a reforma agrária popular sustentável parece cada dia mais distante. 

A Reforma Agrária no Brasil 

A reforma agrária foi realizada nos países capitalistas centrais, a exemplo do continente europeu e dos Estados Unidos. Nos países periféricos, como o Brasil, não há interesse das burguesias locais em sua realização. Sua opção é pela chamada modernização do campo, mantendo a concentração das propriedades de terra, e o latifúndio mudou de nome, passando a se chamar agronegócio. 

Quando Lula foi eleito presidente da República, em 2002, a esperança de se fazer a reforma agrária era muito grande. A surpresa foi que o Governo Lula desapropriou menos terra do que o governo neoliberal de FHC. Ele deu continuidade à política de modernidade no campo, apoiando a agricultura familiar como braço auxiliar do agronegócio. Isso se deu mediante a garantia de um mercado público, através do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), o incentivo e apoio à criação de cooperativas e associações e sua capacitação para ocupação de espaços no mercado privado, por meio do programa Mais Gestão, com orçamento destinado a um ministério específico, o Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA).

No governo de Jair Bolsonaro, tudo caiu por terra. O MDA foi extinto e a agricultura familiar tornou-se mera secretaria abrigada no Ministério da Agricultura, comandado pelo agronegócio. Ou seja, as galinhas foram postas sob proteção das raposas. O orçamento do Incra para 2021 aumentou apenas 4%, passando de R$ 3,3 bilhões para R$ 3,4 bilhões. Deste valor, entretanto, 66% estão reservados para pagamento de precatórios a fazendeiros, que tiveram suas terras desapropriadas por governos anteriores para fins da reforma agrária.

Ao mesmo tempo, os programas de assistência técnica e extensão rural, promoção e educação no campo, reforma agrária e regularização fundiária foram reduzidos a zero. Diminuíram em 90% as ações de reconhecimento e indenização quilombola, crédito às famílias assentadas, aquisição de terras para a reforma agrária, monitoramento de conflitos agrários e pacificação no campo.

Tudo está Perdido?

Nada está perdido, desde que os movimentos camponeses compreendam que nos marcos do capitalismo, a reforma agrária não acontecerá em nosso país. Portanto, por mais aguerridos que sejam, os movimentos sociais rurais não serão vitoriosos; prova disso é o MST, que, com toda sua pujança, não conseguiu manter o avanço da reforma agrária, embora muitas conquistas tenham acontecido em decorrência de sua combativa existência. Os movimentos e organizações urbanas também precisam compreender que sem a união com os sem-terra e camponeses pobres, também não lograrão a libertação do povo brasileiro.

Em nosso país, como em toda a periferia, a reforma agrária popular sustentável, como defendia a Irmã Dorothy Stang, só é possível no socialismo. E este só poderá ser construído com um governo popular sustentado pelo povo organizado por meio da aliança operário-camponesa.

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