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sexta-feira, 29 de março de 2024

A quem interessa o Novo Ensino Médio?

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Foto: Igor Alecsander

Lara de Amaral Sibo e Júlia de Campos


SÃO PAULO – O Novo Ensino Médio já está sendo implementado no estado de São Paulo desde o início de 2021. A proposta promete um Ensino Médio (EM) que valorize os projetos de vida dos estudantes, além de um currículo mais articulado com o mundo do trabalho. Para isso, cada aluno deverá escolher um itinerário formativo, que será o equivalente a escolher uma área do conhecimento (Linguagens e suas tecnologias, Matemática e suas tecnologias, Ciências da Natureza e suas Tecnologias, Ciências Humanas e Sociais aplicadas) para foco de estudo ou escolher um dos 18 cursos profissionalizantes.  A partir dessa perspectiva, o estudante poderá optar por um itinerário com as disciplinas que possuir maior afinidade ou mesmo receber um diploma com certificação de um curso técnico, tal como Administração, Desenvolvimento de Sistemas ou Eletrônica.

Alguns dos motivos alegados para essa reforma, descrita na MP n° 746, que  instituiu a “Política de Fomento à implementação de Escolas de Ensino Médio em Tempo Integral”, em 2016, ainda no governo de Michel Temer (2016-2018), são: a alta quantidade de jovens em idade escolar fora das escolas, o baixo desempenho educacional, a dificuldade de inserção no mercado de trabalho e um currículo fragmentado, extenso e superficial. Como proposta para sanar esses problemas, essa medida amplia a carga horária do Ensino Médio para 1400 horas, a partir dos modelos de escolas em tempo integral, e propõe os referidos itinerários formativos, que  em tese são direcionados pelas escolhas e vocações dos estudantes.

Talvez essas mudanças pareçam sensatas e plausíveis em um primeiro momento. Afinal, quem não almeja uma educação de qualidade, com um sistema sem evasão e que motive os alunos em suas trajetórias de vida acadêmica e profissional? No entanto, o Novo Ensino Médio acaba por ser um tanto quanto contraditório. Vejamos  por partes.

Quem lucra com essas medidas?
Para que a carga horária seja ampliada e sejam fornecidos os diferentes tipos de itinerários formativos com formação técnica, são necessários recursos para que os profissionais da educação sejam devidamente remunerados e que as escolas possuam a infraestrutura adequada para os referidos fins. Entretanto, a Emenda Constitucional (EC) nº 95/2016, a famigerada PEC do teto dos gastos, congela o orçamento público de áreas como educação por 20 anos e nos levanta o seguinte questionamento: como o governo federal vai subsidiar financeiramente esse projeto sem nenhum investimento? O Novo PNE (Plano Nacional de Educação) pode nos fornecer respostas. Ao invés de garantir que os recursos públicos sejam destinados à educação pública, consta no Plano a menção de que os recursos públicos sejam destinados à educação,  podendo ela ser pública ou privada. Ou seja, dinheiro público que deveria ser utilizado para garantir o funcionamento e a qualidade do serviço público sendo investido em empresas privadas. Um convite está feito à privatização das escolas e o mercado fica ainda mais a vontade para tomar conta da educação no nosso país.

Um forte indício de que o lucro acima da educação é o objetivo dessa reforma, é o envolvimento da Fundação Lemann na propaganda e aprovação dessa política.

Essa fundação é um conhecido braço social das empresas de Jorge Lemann, um bilionário – o segundo do Brasil-  com uma fortuna avaliada em US$ 19 bilhões, pela Forbes. Por que será que uma empresa de um bilionário teria interesse em financiar uma reforma na educação como a BNCC (Base Nacional Comum Curricular, projeto base para o Novo EM) e o Novo Ensino Médio? Não é de hoje que essa empresa lucra com a educação, financiando projetos exatamente como esse, que precarizam o serviço público para apresentar a solução perfeita para “salvar” esse mesmo serviço: a privatização.

Dessa maneira fica mais evidente os interesses de classe dessas reformas, aprovadas às pressas e sem devida participação popular em seu debate e formulação.

Um ensino (ainda mais) excludente
Junto aos argumentos para a implementação do Novo Ensino Médio, está em destaque a evasão escolar. Mas a que está relacionado o abandono escolar de tantos jovens? São muitos os fatores que desenham esse cenário, mas ao contrário do que essas pesquisas financiadas por ricaços dizem, o central nessa questão não é a escola ou o seu modelo de ensino. É verdade que há muito espaço para melhorias nas escolas, currículos e metodologias de ensino, porém o ponto crucial quando falamos de abandono escolar é a renda familiar dos estudantes. Pesquisa realizada no Estado pela Rede Nossa São Paulo, denominado “Quadro da desigualdade em São Paulo”, com dados de 2005,  mostra que o pior índice de evasão escolar no ensino privado é de 1,17%, enquanto o pior na rede estadual é referente a Cidade Tiradentes e tem valor 11,81%. É uma diferença muito gritante e que não pode ser justificada pelo currículo e metodologia. Esses são dados anteriores à pandemia, quando muitos jovens já tinham que trabalhar para complementar a renda familiar. Durante a pandemia, com as dificuldades como  falta de ambiente adequado para estudo, falta de acesso à tecnologia, e aumento do desemprego no país, a situação não tem melhorado. Muitos jovens têm sido jogados para os empregos informais, que tomam todo o dia e, muitas vezes, à noite. As escolas públicas chegam a ter índice de evasão previsto de 35%. Três, a cada dez alunos, aproximadamente, não terão condições de concluir seus estudos neste ano. 

A implementação do Novo Ensino Médio, que prevê ensino em tempo integral sem subsídio aos alunos e de maneira híbrida (combinando aulas presenciais e aulas online) deve acentuar ainda mais essas dificuldades, acrescido o fato de que cada escola não precisa – e não tem condições materiais – de ter todos os itinerários a disposição da escolha dos estudantes. Dessa maneira, o aluno que optar por um itinerário que nenhuma escola próxima a sua residência ofereça, deverá abrir mão do itinerário escolhido (e dessa forma vai por água abaixo o discurso da autonomia do aluno na escolha de seus estudos) ou terá que deslocar-se para mais longe (gerando maior desgaste e aumento nos gastos financeiros).

Para alunos com deficiência, esse cenário é ainda mais assustador. Apesar da lei n°10.098, de 19 de dezembro de 2000, que garante o acesso a prédios públicos, e extinção de barreiras que impeçam isso a todas as pessoas, a grande maioria das escolas não possui ambiente adaptado para pessoas com deficiência, tampouco profissionais especializados em quantidade suficiente para um atendimento de qualidade. Nesse caso, alunos que precisam de alguma estrutura diferente ficam com possibilidades de escolha ainda mais restritas. E, com o aumento de matrículas da educação especial, que passou de 21.465 em 2009, para 145.545 em 2020, o desafio fica mais evidente.

Sobre o currículo, a implementação dos itinerários formativos vem acompanhada da retirada ou da não obrigatoriedade de algumas disciplinas, especialmente aquelas voltadas ao estudo da sociedade como história, filosofia e sociologia. Esse novo modelo possui  um viés utilitarista, destacando a preparação para o mercado de trabalho e deixando cada vez mais de lado a formação cidadã. Dessa maneira, os alunos passam a ter acesso mais restrito aos conhecimentos, limitados pelo seu lugar no processo de produção de bens e serviços na sociedade capitalista.

Para os alunos da EJA (Educação de Jovens e Adultos) e ensino noturno a situação também não é muito diferente. Não é segredo que o governo do estado de São Paulo busca acabar com o ensino noturno e com a EJA, mas, a oferta  do EM no período noturno ainda é necessária, uma vez que muitos adolescentes necessitam trabalhar para compor as rendas de suas famílias. Segundo dados do Censo Escolar de 2020, 16,7%  dos estudantes matriculados no EM, que equivale a 1,3 milhão de adolescentes e jovens, estudam no período noturno. Esses alunos serão forçados a estudar em tempo integral sem subsídio, bolsa ou auxílio? Vão deixar de trabalhar? Parece-nos que a proposta “se esqueceu” desta realidade muito comum em nosso país.

Os trabalhadores sempre são prejudicados
Como haverão novas disciplinas, sobretudo no que se refere aos itinerários com caráter técnico, quem serão esses profissionais? Eles terão alguma formação específica para atuar em sala de aula? E quanto aos atuais professores: como ficarão as atribuições de aulas? Haverá a possibilidade de acúmulo de cargos? E a carreira docente será valorizada? 

Todas essas questões permeiam o cotidiano das discussões entre os professores. A insegurança sobre o novo período vem da incerteza da disponibilidade de aulas para atribuição e quantidade de vagas do novo período. Isto porque, apesar do déficit de 80 mil professores no estado de São Paulo, não há abertura de concursos desde 2013. Dessa forma, o número de profissionais se encontra na chamada categoria “O” – sem estabilidade, garantia de emprego e direitos trabalhistas. E com a alteração, retirada e mudança nas aulas ofertadas, muitos professores têm passado por períodos de ansiedade, sem saber como será o seu futuro.

Grande parte do problema, inclusive, é oriundo da forma como as reformas e mudanças são feitas no ensino do estado. Mudanças como essas devem ser feitas da maneira mais democrática possível, consultando toda a comunidade escolar, entre pais, alunos, professores e a gestão das escolas. Infelizmente o histórico de reformas realizadas pelo governo do estado (PSDB) mostra um desprezo pela democracia. Repetidas vezes são impostas mudanças de cima para baixo, que impactam diretamente a vida dos trabalhadores e dos estudantes, sem que haja uma oportunidade honesta de debate e escolha. Esse ano já vimos isso com a implementação do PEI (Programa de Ensino Integral) e agora com a aprovação do Novo Ensino Médio, ambas feitas em plena pandemia, período onde não foi possível reunir os interessados no assunto para discutir as propostas.

A gestão democrática, descrita nas Leis de Bases e Diretrizes (LDB) Infelizmente tem se tornado apenas letra morta. Os espaços destinados ao exercício da democracia nas tomadas de decisões escolares como os conselhos escolares, as associações de Pais e Mestres e os grêmios estudantis têm também sido sucateados e desmontados.

Há que se fortalecer a participação popular nas escolas. Ouvir e falar com os trabalhadores, estudantes e comunidade. Criar assembléias, fortalecer conselhos e politizar a atuação das organizações estudantis.

Eu já vi esse filme antes
O modelo de ensino proposto hoje, com restrição de algumas matérias, limitação do conteúdo e indicação, especialmente profissionalizante, é muito parecido com o instaurado em 1967. Nesse período de ditadura militar, o objetivo do ensino público, para a classe trabalhadora, passa a ser mais tecnicista.

A reorganização do currículo, marcada pela exclusão de disciplinas de caráter histórico e social, é a mesma.

Portanto, essa proposta do Novo Ensino Médio de novo possui apenas o nome. É velha conhecida de regimes de extrema direita e neoliberais. Isso mostra como o projeto de educação está atrelado ao projeto político de um país. Portanto é necessário lutar, como lutaram antes de nós. É preciso lutar por melhores condições nas escolas para os trabalhadores e alunos, fortalecer os ambientes de democracia, exigir investimento adequado. E para além disso, é preciso lutar por um outro projeto de país, que tenha a educação como prioridade, e não o lucro.



 

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