História: 50 anos da Cadeia da Legalidade

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No dia 25 de agosto de 1961, renúncia o então presidente do Brasil Jânio Quadros. O “vassourinha”, como era conhecido por ter usado em sua campanha esse símbolo, prometera varrer a corrupção do país. Não conseguindo seu objetivo, cede à pressão de grupos de direita, com menos de sete meses de governo e renuncia crendo que os que o elegeram implorariam por seu retorno e assim voltaria ao poder mais fortalecido.

Pela Constituição brasileira, em caso de renúncia assumiria o vice-presidente, João Goulart. Este, eleito pela camada mais pobre da sociedade brasileira, faria um governo bem mais à esquerda. Prometera em sua campanha reforma agrária, política, urbana dentre várias outras que entrariam em choque direto com os interesses das camadas mais ricas do Brasil.

No entanto, ao ser anunciada a renúncia, Jango estava em viagem oficial para a China. Assim, assume a chefia do Estado, Ranieri Mazzilli, presidente da Câmara dos Deputados. Cumprindo o mandato da alta burguesia nacional e internacional, os ministros militares se opõem à posse do vice-presidente, formam uma Junta Militar para assumir o governo e anunciam a prisão de Jango, caso retornasse ao país.

Ainda no dia 26, o governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola (1922-2004), declara não concordar com a junta militar e defende a posse do vice João Goulart. Na noite deste mesmo dia, o Marechal Lott e seus correligionários fizeram um manifesto à população brasileira concitando-a a uma enérgica defesa da legalidade. Lott acabou preso por ordem do Ministro da Guerra, Marechal Odílio Denys.

Brizola, para não ter o mesmo destino, parte para a resistência, mobilizando no dia 27 as polícias civil, militar, rodoviária e a guarda civil gaúchas para defender o Palácio Piratini (palácio do governo estadual). Mobiliza também os equipamentos da maior rádio do estado, a Rádio Guaíba, para dentro das dependências do palácio e começa a fazer discursos e programações em favor da legalidade. Mais 15 rádios do país e do exterior formam uma enorme cadeia e começam a transmitir a programação da rádio de Brizola. Esse movimento é batizado de Cadeia da Legalidade.

O movimento sindical também se indigna com o golpe militar e começa a se mobilizar. Em São Paulo, até a noite do dia 29, o DOPS tinha efetuado mais de 200 prisões de operários e líderes sindicais que deflagravam greves políticas nas fábricas contra o golpe. No Rio de Janeiro, foi imposta forte censura à imprensa mesmo com a Constituição ainda vigente. A esta altura, o arcebispo D. Vicente Scherer se posiciona também a favor da legalidade.

O Ministro da Aeronáutica, Brigadeiro Grun Moss, ordena um bombardeio ao Palácio Piratini. Mas isto não acontece porque os sargentos da Aeronáutica se recusam a cumprir tal ordem, furam os pneus dos aviões, armam barricadas nas pistas de decolagem e dão-se as mãos por trás das barricadas. Quando Brizola soube da decisão do bombardeio, ordenou a instalação de metralhadoras no alto do palácio e na vizinha catedral. Carros, jipes, sacos de areia e até bancos de cimento arrancados pelos estudantes defendiam o lugar. Ao mesmo tempo, pela rádio, Brizola faz um longo discurso, do qual segue um trecho:

“Não nos submeteremos a nenhum golpe. Que nos esmaguem. Que nos destruam. Que nos chacinem nesse palácio. Chacinado estará o Brasil com a imposição de uma ditadura contra a vontade de seu povo. Esta rádio será silenciada. O certo é que não será silenciada sem balas. Resistiremos até o fim. A morte é melhor do que a vida sem honra, sem dignidade e sem glória. Podem atirar. Que decolem os jatos. Que atirem os armamentos que tiverem comprado à custa da fome e do sacrifício do povo. Joguem essas armas contra este povo. Já fomos dominados pelos trustes e monopólios norte-americanos. Estaremos aqui para morrer, se necessário. Um dia, nossos filhos e irmãos farão a independência de nosso povo.”

O General José Machado Lopez, comandante do 3° Exército se deslocava até o Palácio Piratini, para falar com o governador. Ao final do discurso, Brizola já contava com mais de 50 mil pessoas ao redor do palácio à espera do General. Todos achavam que o comandante ordenaria a prisão do governador e estavam lá para impedir. Quando o General subia as rampas do palácio, a multidão de mais de 50 mil pessoas (boa parte já armada com um antigo arsenal da Brigada Militar, comprado no início dos anos 30 para um eventual confronto com Getulio, entoou o Hino Nacional, obrigando-o a virar-se, bater continência à bandeira e cantar o hino. O comandante do 3° Exército, na conversa com o governador, declara que vai defender a Constituição e, por conseguinte a posse de João Goulart.

A jornada de Jango para retornar da China ao Brasil, passa ainda pela França, por Nova Iorque, Argentina, Uruguai, enquanto Brizola organiza sua recepção no País, onde entraria  pelo território do Rio Grande do Sul.

Enquanto isso, Porto Alegre é isolada do restante do país de todas as formas possíveis. Da imprensa até os bancos, todos deixaram no isolamento a pequena cidade. O 3° exército, que contava com 120 mil homens no Paraná, em Santa Catarina e no Rio Grande do Sul, reage a esta situação e passa a controlar toda a região sul do país.

Enquanto Brizola organizava a resistência na capital, no interior essa tarefa era cumprida pelos famosos Centros de Tradições Gaúchas – CTGs. Havia também comitês de apoio de estudantes, bancários, intelectuais, ferroviários, artistas. E até tradicionais rivais, Grêmio e Internacional suspenderam o jogo de domingo e declararam apoio à campanha.

No fogo dessa batalha, Jango enfim chega a Porto Alegre. No entanto, preparava-se um golpe dentro do golpe. A Constituição era emendada tornando o país parlamentarista. Assim, Jango não teria força para, enquanto presidente, executar as reformas de base, e a burguesia, finalmente, conseguiria quebrar o monopólio estatal do petróleo.

Jango tinha duas opções. A primeira, proposta por Brizola, seria marchar até Brasília com o 3° Exército, e a segunda, fazer o acordo com os militares e voltar ao poder num Brasil parlamentarista. Jango preferiu a segunda opção.

A massa em frente ao Palácio Piratini vaiou um Jango silencioso. Nem discurso proferiu para evitar uma suposta guerra civil e com ela um banho de sangue. Meses depois, acabou sendo deposto com o golpe militar de 1964.

O maior legado da Cadeia da Legalidade foi ter demonstrado mais uma vez, aos olhos até dos mais duvidosos, a força que tem o povo brasileiro levantado em armas e a necessidade que tem esse mesmo povo de marchar rumo à vitória final.

 Queops Damasceno, Porto Alegre