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domingo, 6 de outubro de 2024

“A arte não é neutra, nem apartidária”

A Companhia do Latão é um grupo de teatro que baseia seu trabalho na reflexão crítica da sociedade. Fundado em 1996, a partir da produção do espetáculo Ensaio para Danton, uma livre adaptação do texto A morte de Danton, de Georg Büchner, durante esses 15 anos o grupo tem realizado uma reflexão sobre as formas ideológicas presentes no sistema capitalista. O trabalho atual a Ópera dos Vivos percorre o imaginário político e cultural brasileiro e traz uma reflexão sobre a questão da mercantilização do trabalho artístico nos dias atuais e sua relação com as ideologias.

Todas as peças do Latão são textos autorais fruto de trabalho coletivo de todos seus integrantes. O grupo utiliza o teatro épico e o teatro desenvolvido por Bertolt Brecht. Além das experiências cênicas, desenvolve produções audiovisuais, publicações e produz e estimula a elaboração teórica do mundo das artes.

Sérgio de Carvalho, diretor da Companhia do Latão e professor do curso de Artes Cênicas da ECA-USP, conversou com A Verdade e falou da relação entre arte e política e de como o teatro pode ser um elemento crítico das atuais estruturas do capitalismo.

A Verdade – Para a Companhia do Latão, qual a função social da arte?

Sérgio de Carvalho São muitas as funções sociais da arte. A primeira é assumir que a arte tem função, que ela não é neutra, apartidária. Ela é uma construção social, coletiva, especialmente o teatro, e, portanto, política, porque envolve tomada de posição de um grupo de pessoas que está trabalhando. Ao mesmo tempo, essa necessidade de reflexão sobre a própria função te obriga a criticar a própria estrutura da arte, ter que pensar o que a arte contém de ideologia. A ideia de arte não é ingênua, ela é socialmente construída. Faz parte da função da arte, também, criticar o próprio teatro, o aparelho teatral – principalmente no capitalismo, em que ele está extremamente mercantilizado. Uma outra função possível é tentar mostrar a possibilidade da ação coletiva. Isso o teatro tem como  característica da sua estrutura. Ninguém faz teatro sozinho. Precisa-se de um público, de um outro ator; precisa-se de uma equipe de trabalho… O teatro ativa o sentido de uma ação coletiva, potencialmente diferente dos padrões dominantes da cultura que está aí.

Você considera Brecht atual, como autor e teatrólogo?

Totalmente. Ele é tão atual quanto se faz necessário atualizá-lo. Brecht não inventou nada, trabalhou o marxismo dentro do campo da estética e descobriu coisas novas. Ele é radicalmente marxista, na medida em que implementa o marxismo dentro do campo dele, o que até então não tinha sido formulado. Ninguém pensou para a dramaturgia uma perspectiva materialista tão radical quanto Brecht; uma aplicação da dialética tão radical quanto ele fez. Nisso, ele é notável. E, como dialético que é, exige que você repense o trabalho dele, à luz da atualidade. Essa é a exigência da obra brechtiana: não atualizá-la, mudando o conteúdo para os dias de hoje, mas  pensar operações dialéticas dentro da situação do capital e da ideologia agora, dentro dos estragos atuais e da situação política atual também.

E a teoria marxista? Como o Latão se relaciona com ela?

O Latão é o grupo mais radicalmente marxista que há no teatro brasileiro, na medida em que este marxismo está aplicado na construção da dialética, na radicalidade dialética como método. Pode haver alguém, tanto quanto nós, interessado no marxismo, mas eu acho que a experiência de 15 anos do Latão foi de radicalização do uso da dialética o tempo todo, da dialética marxista, porque me parece a ferramenta crítica mais poderosa, viva e capaz de fazer com que você perceba os movimentos históricos da atualidade. Marx teorizou sobre movimentos muito amplos do trabalho, do capital, da luta de classes, do mundo da mercadoria, e no teatro você não lida só com movimentos de massa e de classe, você lida também com indivíduos, com subjetividade dentro do capitalismo, com situações humanas íntimas também. Isso exige outras ferramentas. Foi isso que Brecht procurou trabalhar nas obras dele. Ele estava interessado em descobrir em que medida certas ações individuais têm a ver com situações de classe ou estão em contradição com situações de classe. No trabalho do Latão, a subjetividade aparece pensada em contradição com a perspectiva de classe, o que é uma exigência do marxismo.

A Companhia lançou um manifesto pelo teatro materialista que diz que um dos interesses artísticos do Latão é a reativação da luta de classes. Comente.

Falar isso para o teatro tem algo de simbólico, não é real. No entanto, contribui politicamente. É uma ação política. Uma ação teatral, mesmo que pequena, pode influenciar outras pessoas que estão interessadas em outras imagens do mundo e que podem atuar em escala de massa também. A luta de classes é uma categoria que foi posta fora do debate, uma categoria desprestigiada no senso comum. Ela existe, continua sendo uma realidade, mas as formas dela são de difícil descrição hoje. Qualquer sociólogo tem dificuldade de lidar com o próprio conceito de classe hoje. Então, foi importante para nós, no meio teatral, dizer que se tem que olhar para as classes, que as personagens que estamos colocando no teatro pertencem ao mundo de classes, têm determinações ligadas a trabalho, a dinheiro, à necessidade de vender o próprio corpo no mercado. Teatro que não olha para isso vai ser um teatro idealista. Ele tem que olhar para as relações de trabalho. Não adianta fazer crítica antiburguesa só; tem que fazer crítica anticapitalista, a partir de relações materiais de trabalho, e compreender a dialética disso.

E como é a relação com o mercado?

O Latão trabalha marcando posições do ponto de vista teórico, do ponto de vista estético-político. Não temos ilusões de que parte de sua atuação importante se dá dentro do chamado mercado de arte. A gente tenta atuar também fora do mercado de arte. E uma parte complementa a outra.  Fora do mercado de arte, a gente procura ter vínculos com alguns movimentos sociais, procura ações amadoras ou pedagógicas que não estejam pautadas pela lógica do produto cultural ou por expectativa de troca. O Latão é um grupo em que, por exemplo, numa temporada da Ópera dos vivos, a gente promove um círculo de debates e você tem um grande intelectual ali debatendo a peça com alguém que vem de um bairro de periferia da cidade. Tem oficinas do Latão que são muito diferentes e que não poderiam acontecer numa instituição cultural dessas que estão aí. Uma vez o Latão fez uma oficina em que o pré-requisito para você entrar seria ter lido o Manifesto Comunista. Provavelmente, nenhuma instituição cultural iria aceitar a divulgação de um pré-requisito desses.

Arte a serviço da conscientização e diversão como prazer da compreensão: essas duas ideias fazem parte da relação com o público?

O melhor do trabalho do Latão é a ideia de demolição ideológica; não exatamente desconstruir, mas no sentido de negação, como movimento crítico, e de partilhar ferramentas com os espectadores, para pensar problemas. É um trabalho de estímulo à dialética, no movimento negativo dela, sem nenhum negativismo ou sensação de que o jogo está ganho para o capital; mas tentamos ver, examinar os estragos de uma maneira inteligente, divertida, animada, lúdica, mas uma reflexão sobre estragos. Ao mesmo tempo, fala-se das dificuldades da política, mas pensando estratégias de superação dessas dificuldades. A Comédia do trabalho é uma peça sobre estrago, mas ela fala também de que quando se juntam pessoas em torno de alguma coisa, você consegue um movimento.

Como a mercantilização da arte influencia a consciência política da população?

Influencia totalmente, porque a mercantilização não é um problema moral, é um problema prático. Ninguém cultua mercadoria porque é idiota ou porque tem um senso religioso do capital, cultua porque está obrigado a ser mercadoria. A questão é que esse processo faz abstração da vida pessoal, uma abstração preparada para a troca; você passa a agir com esses padrões ideológicos do mundo da troca mercantil. Eu sinto que a influência cultural do capitalismo é secundária diante da prática concorrencial do trabalho precarizado. Apesar de secundária, ela é muito forte, tem falsos envolvimentos de desejo, vontade, decisão humana. Cria ilusões de livre arbítrio dentro do mundo da mercadoria. Na experiência do Latão, em determinadas situações em que a pessoa tem condições de olhar para aquilo isso pode ser transformador da experiência pessoal dela, ter contato com ações de outro tipo. Aí eu vou de novo com Marx. De fato, a crítica das armas é mais poderosa do que a arma da crítica. No entanto, a crítica pode se converter em ação material em determinado momento. Quando se dá essa passagem para uma práxis material, coletiva, você vê que isso tem conexões com um aprendizado e um olhar diferentes. Ela tem aí uma ferramenta de trabalho importante num mundo em que o capitalismo se culturalizou muito, sintetizou muito, trouxe isso como arremedo de subjetividade. Passa a ser importante uma realização cultural de contramão, de enfrentamento. Por isso, o Latão sempre procura marcar posições, enfrentar.

Vocês estão acompanhando atualmente as revoltas populares em vários países do mundo contra o capitalismo. Como observam isso?

Um professor amigo meu disse que a crise vai trazer o marxismo para a pauta dos debates europeus, e precisamos ver como esse movimento rebate aqui, no meio cultural. Está um tempo interessante, de aguçamento de percepção histórica. Talvez estimule as pessoas a pensarem sobre o campo onde o estrago acontece, que é nas relações de trabalho. Já está havendo um retorno de reflexão política que andou neutralizada, no campo artístico, porque houve uma espécie de acordo com o estado de bem-estar social projetado na era Lula, em que parte do movimento teatral freou o seu impulso crítico, porque passou a orientar a vontade política ou a vontade de reflexão para pegar verba pública. A partir da ocupação da Funarte, parece que vai mudar esse quadro, porque a partir dessa ocupação houve uma ação de alguns grupos de periferia que têm mais lucidez sobre isso que estava em curso há cinco ou dez anos atrás. Foi o mais parecido com o início do Arte contra a barbárie, que já tem quase 15 anos, o que está acontecendo com esses grupos que estão atuando na periferia de São Paulo. Então, dali, talvez saia alguma coisa. As pessoas têm que voltar a ter um horizonte mais radical. Aí, a palavra revolução volta à tona como referência para isso, um horizonte menos reformista.

Para o Latão, a revolução é uma palavra viva…

Sim, porque é uma palavra que traz a ideia, traz a necessidade de projetar algo além desse horizonte que temos, que é o horizonte do mundo do capital. Isso não é vida. Não é uma ideia só, é uma noção que envolve movimento. Não é um estado idealizado, mas um horizonte que você tem que ter de um outro lugar, e um outro lugar que não está pronto, que vai ser sempre construído. Marx tem uma frase que eu gosto e que diz: “Comunismo não é um estado, é um movimento”.

Ana Rosa Carrara, São Paulo

 

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