Segundo a tese mais aceita no meio acadêmico, no ano de 1538 o primeiro grupo de escravos negros vindos da África aportaram na Bahia trazidos pelo traficante de pau-brasil Jorge Lopes Bixorda. A partir de então, foram milhões de negros e negras trazidos ao Brasil para servir de mão de obra escrava pelos senhores de engenho, traficantes de pau-brasil, mineradores, barões do café e latifundiários de todos os matizes. Os negros africanos eram trazidos para o continente americano em navios com um índice de mortalidade grande, pois as condições da viagem eram as piores possíveis, sem água potável, médicos ou comida suficiente.
Seguiram-se quase 400 anos de escravidão oficial e outros tantos de escravidão clandestina. Todos esses anos de escravidão negra geraram uma dívida histórica do Estado capitalista brasileiro com os povos negros que vieram para o Brasil forçadamente e foram determinantes para construir, cultural, sociológica e economicamente, o país que temos hoje. Com o fim da escravidão e o desenvolvimento de novas tecnologias na produção, os negros passam a ocupar postos de trabalho que necessitavam de menos capacitação profissional e consequentemente vão ficando à margem. Enquanto os industriais e agroexportadores de café preferiam imigrantes europeus com experiência em trabalhos mais elaborados, os negros iam ficando submetidos a subempregos e mendicância, formando as primeiras favelas brasileiras nas cidades de grande população negra, como o Recife, Salvador e o Rio de Janeiro.
Zumbi
Porém, toda essa história de opressão não ficou sem resposta por parte de negros e negras, e várias revoltas e rebeliões se inscrevem na história de nosso país. Uma formação característica da época das rebeliões escravas era o quilombo. Formados por negros e negras fugidos dos engenhos e latifúndios, os quilombos eram grandes aglomerações num sistema de produção cooperativa e divisão de tarefas coletivas. O mais famoso quilombo foi o de Palmares, liderado por Zumbi.
Na verdade, Palmares era um conjunto de dez quilombos que, em meados de 1670, atingiu a soma de 20 mil habitantes, segundo dados da época. Foi inspirado nesta história que Cacá Diegues fez o filme Quilombo. Com atuações memoráveis de Zezé Mota e Antônio Pompeu (no papel de Zumbi) o filme retrata muito bem o cotidiano de Palmares, a forma de tomar as decisões, as relações entre os quilombolas e as relações com os brancos. Com roteiro baseado nos livros Ganga Zumba (João Felício dos Santos) e Palmares (Décio de Freitas), o filme retrata a fuga de um grupo de escravos de um engenho em Pernambuco, por volta de 1650, e a subida ao Quilombo dos Palmares; com eles vai Ganga Zumba, príncipe em África e líder militar. Com o passar dos anos, o seu afilhado Zumbi assume a liderança militar, e depois de discordar do acordo entre Ganga Zumba e o governador de Pernambuco, assume a liderança política e religiosa de Palmares, enfrentando um dos maiores exércitos da história colonial brasileira. O filme conta ainda com uma trilha sonora à altura, dirigida por Gilberto Gil.
Palmares não foi a única resistência negra. A revolta dos Malês, na Bahia, os incêndios dos canaviais em Pernambuco e Alagoas, a Balaiada, no Maranhão, são apenas alguns exemplos de rebeliões contra a situação da escravidão. Porém, na história que se conta nas escolas, não é bem assim. “Ao tratar das lutas dos negros brasileiros e africanos, uma das características mais frequentes da historiografia oficial é classificá-las à margem da história (…) O que têm a ver os negros com o alargamento das fronteiras? Ou com a independência? Ou com a República? Como não se pode alijá-los do 13 de Maio, transformam-nos em figuração: uma gente trabalhadora, um tanto bruta, de quem os grandes homens tiveram compaixão, dando-lhes a liberdade”, diz Júlio José Chiavenato em seu livro As lutas do povo brasileiro. Mas por que interessa apagar de nossa história esse período?
Ao contrário do que afirmam os historiadores oficiais, o fim da escravidão aconteceu porque ficou simplesmente inviável para os capitalistas manterem tal instituição. Inviável economicamente, porque os negros resistiam cada vez mais, ateando fogo a engenhos, colocando pedaços de carne podre no meio da moagem da cana, fugiam, se rebelavam matando feitores e senhores de engenho; inviável socialmente, porque havia uma comoção pública abolicionista crescendo, principalmente entre os estudantes e trabalhadores urbanos, como fazia notar Castro Alves em seus versos: “Cai, orvalho do sangue do escravo/ cai, orvalho, na face do algoz/ cresce, cresce, seara vermelha/ cresce, cresce vingança feroz”. Portanto, o que acabou, principalmente, com a escravidão, foram as lutas dos negros e trabalhadores e não a boa vontade de nenhuma princesa. E mesmo com todas essas lutas, ainda assim, os negros herdaram dificuldades e preconceitos que se arrastam até os dias atuais.
Quanto vale ou é por quilo?
Um bom panorama destas dificuldades e preconceitos vividos hoje pelos negros pobres é o filme de Sérgio Bianchi, Quanto vale ou é por quilo? Com um roteiro bastante original, que mescla cenas históricas com acontecimentos do cotidiano, o filme nos apresenta a história de escravos e escravas negras deparados com uma sociedade hostil e hipócrita, que apresenta como solidários os brancos que, coniventes com a escravidão, dão migalhas de direitos aos negros próximos. E o brilhantismo do filme está exatamente no paralelo que faz com a atualidade, na atuação de ONGs e entidades beneficentes, que movimentam milhões de reais por ano e, quando resolvem algo, são problemas individuais, mantendo o mesmo sistema de opressão existente.
O importante do filme é exatamente a demonstração de que são os mesmos sentimentos que moviam e movem os beneficentes na busca por salvação ou mesmo ganhos pessoais. Uma das contas que o filme revela é emblemática: “Em todo o País, apenas em entidades que prestam assistência a menores carentes, calcula-se que sejam movimentados mais de 100 milhões de dólares por ano. Cada criança carente corresponde, nesse novo mercado, à criação de cinco novos empregos. (…) de acordo com essa funcionária, temos cerca de dez mil crianças abandonadas nas ruas. Se pegássemos os 100 milhões de dólares, quantia estimada de movimentação financeira dessas entidades que atendem menores carentes, e dividíssemos pelo número estimado de crianças, que são dez mil, cada uma receberia 10 mil dólares por ano. Com esse dinheiro seria possível comprar um apartamento de quarto e sala para cada um deles, a cada dois anos.”
No próximo dia 20 de novembro comemoramos o Dia da Consciência Negra. Criado no início da década de 70 do século passado, em oposição ao 13 de Maio que se apresenta como a data em que a princesa Isabel libertou os escravos, a data marca o dia da morte de Zumbi (aquele que nunca morre, em quimbundo, linguagem de origem bantu muito comum entre os escravos trazidos ao Brasil).
Nesse dia, a melhor forma de comemorar é organizar a luta contra o racismo e a opressão que ainda hoje persiste sobre os negros em nosso país, e uma boa forma de organizar essa luta é com cine-debates nas universidades, escolas, bairros populares e locais de trabalho com esses dois filmes, Quilombo e Quanto vale ou é por quilo?, pois é importante combater o mito de que vivemos numa democracia racial e que o racismo ficou no passado.
Yuri Pires,
critico de cinema de A Verdade
Por que sera que em todos as nossas fotos, so nos mostram dancando?
Ja nao e hora de mudar a propaganda de que negro so e bom dancarino?