“O Carnaval é hoje uma grande alienação das manifestações culturais”

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Bongar foto 2Formado em 2001, o Bongar é um grupo musical com origem na cultura negra, especificamente na comunidade religiosa terreiro Xambá do Quilombo do Portão do Gelo, que é o primeiro quilombo urbano de Pernambuco, localizado no Município de Olinda. No dia 09 de fevereiro, na Torre Malakoff, no Recife Antigo, o grupo estará lançando seu DVD Festa de Terreiro de Bongar.  

Em entrevista exclusiva a A Verdade, o Bongar conta como surgiu, denuncia o Carnaval hoje como “uma grande alienação das manifestações culturais” e a difícil tarefa do grupo em resgatar, preservar e reproduzir a cultura negra num país racista.

Como surgiu o grupo? 

No começo, éramos nove membros e a gente não sabia ainda que ritmo tocar, depois ficaram seis. Decidimos tocar coco de roda, que é uma vertente forte na comunidade Xambá, e era uma coisa que a gente brincava quando criança e via nossos bisavós, avós e tias tocando. Desde o primeiro ensaio, já tinha o primeiro show marcado, em 2001. Com o passar do tempo, entendemos que o grupo surgiu para apresentar à população o terreiro de Xambá, que muitos achavam que estava instinto, ficando nossa comunidade bastante conhecida.

Qual a relação do grupo Bongar com a juventude da comunidade?

Vivemos numa comunidade quilombola e sentimos a necessidade de autoafirmação do povo negro entre os jovens. Para gente era fundamental desenvolver ações que pudesse valorizar isso. Entendemos que a música é um instrumento capaz de levar à transformação. Além da música, promovemos palestras, oficinas de percussão e capoeira, participamos de eventos externos de políticas afirmativas. A partir desse trabalho, percebemos essa transformação considerável na nossa comunidade. Quando a gente era criança, diziam que nosso cabelo era ruim e hoje as crianças e os adolescentes fazem trancinhas, assumem o black. A gente tinha que dizer que era espírita para ser aceito pelos coleguinhas e pelas professoras, hoje até as crianças assumem que são de terreiro. O Bongar nasceu com o propósito der ser referência da cultura negra para essa juventude que não se vê na grande mídia e se transformam para serem aceitos.

Qual a relação da cultura negra com os terreiros?

O terreiro sempre foi fonte de inspiração para os movimentos políticos de identidade negra. Não dá para pensar em políticas afirmativas sem tocar no cultural do negro. Não é só a cota para o estudante negro, a universidade deve fazer uma reforma, reconhecer a história do negro no Brasil. Há pouquíssimos estudos da africanidade nos países latinos. São todos esses elementos que devem ser resgatados e que a grande referência são os terreiros. É dentro deles que está grande parte da nossa história, e essa história está na oralidade, então a academia tem que reconhecer o grande valor que tem a história oral, para relevar um Brasil que não está nos livros. Nisso os terreiros de candomblé estão na ponta. Qualquer arte que a gente venha a fazer tem relação com o sagrado. Não só da cultura negra, mas de uma maneira geral, na Ditadura Militar, por exemplo, os terreiros davam refúgio a vários artistas perseguidos.

É democrático o financiamento cultural no Brasil?

Não. Apesar do Estado brasileiro afirmar que somos um país pluricultural, só investe recursos para manutenção do que ele acredita ser uma “cultura representativa”. Há um mito de que gestores culturais não são racistas, mas existe sim racismo institucional, tanto no Ministério da Cultura como em diversas secretarias. Prova disso foi a 3ª Conferência de Cultura não aprovar a proposta de destinar 20% dos recursos da Cultura para manifestações de matrizes africanas, mesmo o Brasil tendo quase 50% de negros na sua população, e, num gesto simbólico, a mesa da Conferência pediu para que os gestores a favor dessa proposta ficassem À esquerda e os contra à direita. Logo, não existe orçamento suficiente para projeto de cultura negra. E cabe aos movimentos e grupos de cultura negra se desdobrar para se autofinanciar.

E no Carnaval, existe espaço para cultura negra? 

O Carnaval é hoje uma grande alienação das manifestações culturais. O Carnaval deveria ser a culminância de todo um processo desenvolvido durante o ano, e não ser um momento onde as agremiações vão mendigar um mísero cachê, cabendo às prefeituras e os estados decidirem se ele é merecedor ou não. O debate de cultura fica nesse âmbito do cachê, alienando quem faz cultura.  É gasto uma fortuna para quatro dias com artistas nacionais e, durante o ano, não existem recursos para a gente fazer nada. Não existe uma política de base comunitária, onde o Estado esteja presente o ano todo formando essas pessoas para o Carnaval. Inclusive, se houvesse esse trabalho, as apresentações seriam uma contrapartida das agremiações. Por conta disso, vários grupos culturais tradicionais das comunidades não existem mais.

Camila Áurea, Recife