No final do ano passado foram realizadas as primeiras audiências de um processo inédito, aguardado há anos, contra torturadores da Ditadura Militar que durou de 1964 a 1985.
O Ministério Público Federal (MPF) move uma ação contra Carlos Alberto Brilhante Ustra, Carlos Alberto Augusto (Carlinhos Metralha) e Alcides Singilo, agentes da repressão no período, pelos crimes de sequestro e privação da liberdade de Edgar de Aquino Duarte, corretor de valores preso pela polícia política da ditadura em 1971 e até hoje desaparecido.
A tese jurídica do MPF é a de que, enquanto não se encontrar o corpo de Duarte, ele permanece desaparecido, configurando um crime permanente e, portanto, não pode ser considerado um anistiado. “Como os fatos ainda estão acontecendo, não há como se falar em Lei de Anistia”, explicou o procurador da República Andrey Borges de Mendonça, um dos autores da ação.
Ustra comandou o Destacamento de Operações de Informações-Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi) de São Paulo no período de 1970 a 1974. Augusto foi investigador do Departamento de Ordem Política e Social (Dops), onde integrava a equipe do temido delegado Sérgio Paranhos Fleury. E Singilo foi delegado do Dops.
Nas audiências realizadas nos dias 9, 10 e 11 de dezembro foram ouvidas as testemunhas de acusação – ex-presos políticos que testemunharam a prisão de Duarte no DOI-Codi e no Dops – pelo juiz titular da 9ª Vara Criminal, Hélio Egydio Nogueira. Os ex-presos, além de relatarem a prisão de Edgar, falaram sobre suas próprias prisões e torturas sofridas.
Neste evento histórico, pela primeira vez, os torturadores sentaram no banco dos réus. Ustra não compareceu às audiências alegando problemas de saúde, mas Augusto e Singilo estiveram presentes nos três dias e não economizaram ironias e risadas durante os relatos das torturas sofridas pelos ex-presos e, em alguns momentos, eles e cerca de 10 pessoas que os acompanhavam, tentaram intimidar os presentes e foram reprendidas pelo próprio juiz. Augusto, que segue na ativa como delegado de polícia de segunda classe no município de Itatiba e foi alvo de um esculacho popular realizado no primeiro semestre do ano passado, era o mais raivoso na audiência e chegou a declarar à imprensa que Ustra, Fleury e outros torturadores eram heróis nacionais.
As audiências de oitiva das testemunhas de defesa dos torturadores, entre elas Paulo Maluf e Michel Temer, serão realizadas no fim de março e início de abril deste ano, justamente na data em que o Golpe Militar completará 50 anos.
O Coronel Ustra já foi condenado em dois processos anteriormente, nenhum deles penal, ambos eram civis. No caso da família Teles, a ação é declaratória e pede para que ele seja considerado torturador e o coronel já foi condenado em segunda instância. Já na ação da família Merlino ele foi condenado em primeira instância pelo assassinato de Luiz Eduardo da Rocha Merlino, mas recorreu nos dois processos e aguarda novo julgamento.
Infelizmente, nos primeiros dias de janeiro deste ano, a Justiça Federal extinguiu o processo de ocultação de cadáver que também tinha como réus Ustra e Singilo, neste caso acusados pelo MPF de ocultar o cadáver do militante da Ação Libertadora Nacional (ALN) Hiroaki Torigoe, assassinado em 1972 no DOI-Codi, alegando que o crime estaria prescrito.
O MPF alega que, assim como o crime de sequestro, o crime de ocultação de cadáver é permanente e não deve prescrever até que o corpo seja localizado. Mas o juiz federal, Fernando Américo de Figueiredo Porto, teve entendimento diferente sobre o assunto. Para ele, o crime de ocultação de cadáver tem natureza instantânea, como o de destruição do corpo, e não permanente.
Autor da denúncia, o procurador da República Sergio Suiama afirma que, ao equiparar as situações – ocultação e destruição de cadáver –, o magistrado ignora que os acusados ainda podem dar satisfações a respeito do paradeiro dos restos mortais de Hiroaki Torigoe. “Para além do erro jurídico, a posição do juiz também representa um descaso em relação à conduta permanente e atual criminosa dos réus”. Ainda cabe recurso contra a decisão.
Nossa luta avança
Na manhã de 27 de janeiro, o Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico (Condephaat), órgão de preservação do Estado de São Paulo, aprovou por unanimidade o tombamento do prédio que abrigou a Operação Bandeirantes (Oban) e posteriormente o DOI-Codi paulista. Hoje, no local, funciona o 36º Distrito Policial. O tombamento do prédio tem como objetivo a transformação do espaço em local de memória.
O pedido havia sido feito em 2009 pelo ex-preso político Ivan Seixas apoiado por entidades ligadas aos Direitos Humanos. Em 2013, membros da Comissão Nacional da Verdade e da Comissão “Rubens Paiva” se juntaram à ex-presos políticos e militantes dos Direitos Humanos para reiterar a solicitação aos secretários de Segurança Pública e de Cultura do estado de São Paulo, Fernando Grella e Marcelo Araújo.
O deputado estadual Adriano Diogo, presidente da Comissão “Rubens Paiva”, fez intermediações durante o processo. Diogo, que foi preso e torturado no DOI-Codi em março de 1973, disse que agora aguarda a revogação do decreto de 1979, do então governador de São Paulo, Paulo Maluf, onde o Estado passou para o II Exército a propriedade sobre o terreno onde ficava o centro de repressão. “Não é admissível uma delegacia de polícia funcionar num prédio que abrigou o DOI-Codi. É como se uma usina de gás alemã funcionasse até hoje em um campo de concentração”, destacou.
O prédio foi um dos maiores centros de tortura do país. Pelo menos 5.000 pessoas foram presas e torturadas e 50 foram assassinadas no local. A conquista do tombamento representa para Ivan Seixas um significado profundo. Ele tinha apenas 16 anos quando esteve preso no DOI-Codi e ali assistiu o assassinato de seu pai, Joaquim Alencar de Seixas, na noite do dia 17 de abril 1971.
Vivian Mendes, São Paulo