Olinda não tem apenas as belezas naturais e a arquitetura colonial que a transformaram em Patrimônio da Humanidade. Essa bela cidade foi palco de muitas lutas de libertação, como as travadas pelos bravos guerreiros caetés contra os invasores portugueses, e os movimentos republicanos. Berço de heróis, ela gerou, entre tantos, um jovem que combateu a ditadura militar implantada no Brasil em 1964 e teve a sua vida sacrificada por defender os ideais de Liberdade, Justiça Social e Lealdade aos companheiros.
Fernando Augusto de Oliveira Santa Cruz nasceu em 20/02/1948, quinto filho do médico sanitarista Lincoln Santa Cruz e de Elzita Santos de Santa Cruz Oliveira. Quando caíram sobre o país as trevas do 1º de abril de 1964, ele tinha apenas 16 anos, mas não tardou a se engajar na luta pela democracia, integrando-se ao Movimento Secundarista.
Ensino público e gratuito, liberdade e revolução
No início dos anos 60 o Movimento Estudantil, dirigido por suas entidades nacionais União Nacional dos Estudantes (UNE) e União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (UBES) tinha presença marcante na vida do país. Defendia a Reforma Agrária e demais reformas de base propostas pelo governo de João Goulart e, especificamente, a Reforma Universitária e a democratização do ensino – por uma escola pública e gratuita.
As medidas repressivas adotadas pela ditadura militar desestruturaram as organizações operárias, camponesas e estudantis. Com muita dificuldade, o Movimento Estudantil começou a reerguer-se. Em 1966, recomeçaram as mobilizações de massa contra o acordo MEC-Usaid, que colocava o ensino brasileiro nas mãos dos Estados Unidos da América do Norte, principal potência imperialista. 1968 foi um ano de grandes manifestações nas principais capitais do país, culminando com a histórica passeata dos 100 mil no Rio de Janeiro. Esse ano registra, ainda, a retomada da luta operária com as greves em indústrias metalúrgicas de Contagem (MG) e Osasco (SP). As lideranças tinham a impressão de que os dias da ditadura militar estavam contados e, em pouco tempo, ela ruiria tal qual um castelo de areia.
O regime, ao contrário, endureceu. Em 13/12/1968 editou o Ato Institucional nº 5, o famigerado AI-5. Fechou o Congresso Nacional, cassou mandatos e direitos políticos de líderes oposicionistas; suspendeu as garantias do Judiciário. Daí em diante foi célere a escalada repressiva, até o fecha-mento total. Em fins de agosto de 1969, uma Junta composta pelos ministros do Exército, da Marinha e da Aeronáutica assume o governo, sucedendo o ditador Costa e Silva, vítima de um derrame cerebral. Em 30/10/1969 torna-se ditador de plantão o general fascista Emílio Garrastazu Médici. Sobrevém a completa escuridão. Imprensa censurada, Lei de Segurança Nacional, criação de um sis-tema repressivo clandestino a partir dos DOI-Codi, Centros de Informação do Exército, Marinha e Aeronáutica, Dops, Polícia Federal, enfim toda uma parafernália articulada nacionalmente. Os militantes eram presos na calada da noite, sem nenhum mandado judicial, torturados e mortos nos porões da repressão. Em relação a alguns, o sistema divulgava notas mentirosas, dizendo que tinham sido “abatidos” em tiroteios com os agentes; outros, simplesmente, eram dados como” desaparecidos”.
A luta dos estudantes era conduzida por organizações políticas forçadas a se manterem clandestinas. Além da luta por um ensino público, gratuito e livre de ingerências imperialistas, elas combatiam a ditadura militar e propagavam o Socialismo como solução para os problemas dos trabalha-dores brasileiros. Entre essas organizações, estava a Ação Popular Marxista-Leninista (APML), na qual militou Fernando Santa Cruz. A APML nascera da Juventude Universitária Católica. Muitos membros da JUC evoluíram politicamente e resolveram romper com os limites da Igreja Católica, fundando em fevereiro de 1963 a Ação Popular (AP). A AP manteve a estrutura organizativa herdada da JUC até 1971 quando, em sua 3ª reunião ampliada, assumiu o marxismo-leninismo e se transformou em Partido Revolucionário, de acordo com os princípios e a estrutura leninistas. Para a derrubada da ditadura militar e a tomada do poder político, definiu o caminho da luta armada, não na forma de guerrilha urbana – como fizeram outras organizações – mas na construção das condições para a deflagração da Guerra Popular, a partir das regiões mais sofridas do campo.
A hora da luta
Fernando Santa Cruz participou ativamente das manifestações contra o Acordo MEC-Usaid, como estudante secundarista no Recife (Colégio Carneiro Leão e, depois, Colégio Estadual de Pernambuco). Numa dessas manifestações, em 19/05/1967, aos 19 anos de idade, amargou sua primeira prisão. Em ofício ao Juiz de Direito da Vara Privativa de Menores, o Delegado de Segurança Social, Moacir Sales de Araújo, informa que Fernando e seu colega Ramires Maranhão do Vale foram detidos “quando, juntamente com vários outros estudantes, promoviam manifestações de caráter reconhecidamente subversivo, representadas por atos previstos no decreto-lei nº 314, de 13 de abril de 1967 (Lei de Segurança Nacional). Passou uma semana no Juizado de Menores, juntamente com crianças e adolescentes recolhidos das ruas. Essa convivência com os excluídos despertou sua consciência de classe; ele saiu mais disposto, intensificou a militância e integrou-se à Ação Popular. Foi um dos reorganizadores da Associação Recifense dos Estudantes Secundaristas (Ares).
Com a feroz repressão intensificada após o general Médici assumir o governo, mudou-se para o Rio de Janeiro em dezembro de 1969, onde ingressou no curso de Direito da Universidade Federal Fluminense, tendo atuado no Centro Acadêmico do seu curso e no Diretório Central dos Estudantes. Em 1972, nasceu o único filho, Felipe, fruto do seu casamento com a também militante Ana Lúcia Valença. Nesse mesmo ano mudou-se para São Paulo, onde assumiu emprego conquistado através de concurso público, no Departamento de Águas e Energia do Estado. Fernando optara por não ingressar na clandestinidade e, por isso, afastou-se de uma militância mais ativa, mas cumpria importantes tarefas de apoio: visitava e ajudava famílias de militantes presos; fazia a ligação entre companheiros clandestinos. Angustiava-se com as prisões e desaparecimentos que ocorriam, cada vez com maior freqüência. Pouco tempo antes do seu próprio seqüestro visitou a família e disse a um dos irmãos: “Esse pode ser o último ano que venho aqui, que estou tomando cerveja com você, revendo pessoas amigas, queridas, re-vendo Olinda”. Recusou firmemente a sugestão de deixar a política. “A luta política, a defesa do seu povo, era para Fernando o próprio sentido de estar vivo. Abandoná-la, seria como sair da vida”¹.
“Mamãe, por que papai não volta para casa? Tenho tanta saudade dele…”²
Coerente com o que dissera ao ir-mão, Fernando decidiu estreitar os contatos com a APML e retomar uma militância mais intensiva. Para isso, foi com a família passar o carnaval de 1974 no Rio de Janeiro. No dia 23 de fevereiro daquele ano foi a um encontro com o amigo Eduardo Collier Filho, também pernambucano e militante da mesma organização, e nunca mais voltou. A confirmação do seqüestro dos dois jovens pela polícia política veio com a invasão efetuada pouco depois ao apartamento de Eduardo, onde um grupo de homens, sem identificação alguma, revirou todos os pertences e levou os seus livros.
Busca e denúncia da Ditadura
Começou a busca desesperada. Seu irmão, o advogado Marcelo Santa Cruz, hoje vereador em Olinda, pelo PT, impetrou habeas corpus. Parentes peregrinaram pelos órgãos de segurança. Tudo em vão. Encaminharam denúncias a parlamentares do MDB, personalidades civis e militares, e a organismos como Anistia Internacional e Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA. Em 6/10/1974 o deputado pernambucano Fernando Lyra leu no plenário da Câmara uma carta enviada pelas mães dos dois jovens seqüestrados, na qual elas bradavam, a certa altura: “…Já não acreditamos mais em nenhum pressuposto jurídico válido, e todo o ordenamento torna-se anticristão e, por conseguinte, sem nenhum sentido ético. Quando é negado aos cidadãos o elementar direito de defesa sob a subjetiva alegação de ‘segurança nacional’, deixando-o em prisões clandestinas; em que as autoridades recusam e negam informações da prisão efetuada, desanimamos e passamos a acreditar que ressurge um passado que a História condenou e sepultou com a vitória na 2ª Guerra Mundial”.
Ante as pressões, Armando Falcão, ministro da “Justiça” do ditador Ernesto Geisel, divulgou nota incluindo Fernando e Eduardo numa lista de 25 militantes que estavam com mandado de prisão expedido, por atividades subversivas, mas não tinham sido encontrados pela polícia. Portanto, estavam desaparecidos. A família de Fernando desmascarou a farsa, provando que ele tinha emprego fixo e endereço certo em São Paulo, logo não estava sendo procurado. Voltou o silêncio total. Era mais um jovem seqüestrado, torturado e morto nos porões da repressão. Sem ter cometido crime algum. Sem julga-mento. Nem ao corpo para sepultar, a família teve direito. Nem a certeza da morte.
Esta só veio a ocorrer em dezembro de 1995, quando a Lei Federal nº 9.140 reconheceu como mortos os “desaparecidos” entre 02/09/1971 e 15/08/1979. Foi uma vitória parcial das famílias, pois o Estado não assumiu sua inteira responsabilidade. Não esclareceu quais as circunstâncias das mortes, exatamente porque isso leva-ria à identificação dos assassinos, cuja punição os parentes dos mortos e a sociedade brasileira cobrariam. O Estado deve, ainda, a localização dos corpos, pois é desumano negar aos familiares o direito de sepultar seus parentes mortos.
A homenagem maior
Fernando não foi esquecido. Tem recebido várias homenagens. Em 1979 os estudantes do curso de Direito da Universidade Católica de Pernambuco deram seu nome ao Diretório Acadêmico. Chama-se também Fernando Santa Cruz o Diretório Central dos Estudantes da Universidade Federal Fluminense. Em 23/02/1984 a Câmara Municipal de Olinda aprovou uma lei dando, também, seu nome ao Teatro do Mercado Popular do Varadouro. Esta lei, de n.º 4.423/84, foi sancionada pelo prefeito em 20 de março do mesmo ano. Em 1985 é lançado o livro Onde está meu filho? História de um desaparecido político. O Teatro Fernando Santa Cruz foi palco, na passagem dos 15 anos do seu seqüestro, 23/02/1989, de um ato público de louvor ao herói e denúncia dos crimes da ditadura, para que não mais se repitam. Em 21/03/1996 foi inaugurada a Escola Municipal Fernando Santa Cruz, no bairro do Jordão, Recife.
Mas a maior homenagem não está escrita em nenhuma lei, em nenhuma placa. Está na consciência, na luta dos estudantes e de todo o povo pernambucano e brasileiro, que continua enfrentando uma ditadura bem mais sutil, mas tão nociva quanto aquela que matou o jovem herói. Uma ditadura que está destruindo o patrimônio nacional, sucateando o ensino público, deixando milhões de famílias sem trabalho, sem terra, sem moradia, na mais profunda miséria. Em cada ato público, greve, passeata, panfleto ou discurso; em cada passo dessa caminhada árdua e longa, mas vitoriosa porque tem o futuro a seu favor, mesmo que seu nome não seja pronunciado, Fernando Santa Cruz está presente!
Notas
1- Depoimento de Tuca, irmão de Fernando Santa Cruz, para o livro Onde Está Meu Filho? Editora Paz e Terra, 1984.
2- Palavras de Felipe, filho de Fernando, à sua mãe Ana Lúcia, aos 2 anos de idade
Luiz Alves
(Publicado em A Verdade, nº 8)