Muitos podem achar que a água que tomava o povo brasileiro nos anos 50 era mágica. A quantidade de grandes artistas que cresceram nesta época pode nos fazer pensar nesta possibilidade. Elis Regina, Tim Maia, Maria Bethania, Cartola, Chico Buarque, etc., são alguns dos inúmeros artistas que engrandeceram nossa cultura.
Luiz Gonzaga do Nascimento Júnior, o Gonzaguinha, também tomou muita água nesta época. Podemos contar sua história a partir de suas composições, pois possui uma obra baseada nas experiências de sua vida. Filho do mais famoso sertanejo nordestino, Luiz Gonzaga (Rei do Baião) e da cantora Odaléia Guedes dos Santos, para quem dedicou a música Odaléia, Noites Brasileiras. Gonzaguinha não seguiu os mesmos passos dos pais. A mãe morreu de tuberculose ainda muito jovem, com apenas 22 anos de idade, deixando Gonzaguinha órfão aos dois anos, e o pai, não podendo cuidar do menino porque viajava por todo Brasil, entregou-o aos padrinhos Dina e Xavier, no morro São Carlos, periferia do Rio de Janeiro. Canta sua infância em “Com a Perna no Mundo”.
Sempre disse que aprendeu muito com as lições de vida que recebeu pelas ladeiras do morro. Para conseguir seus primeiros trocados, carregava sacolas na feira. Moleque Luizinho – seu apelido de infância – aprontou com a vizinhança do bairro, furou três vezes o olho esquerdo com pedrada, estilingada e quina de cama (perdeu 80% da visão deste olho). No morro despertou a paixão pelo futebol e pela música. Desde cedo, frequentou os blocos e rodas de samba da Unidos de São Carlos. Aos 14 anos, escrevia sua primeira composição: Lembranças da Primavera. “Nas ruas do Estácio, Gonzaguinha ia crescendo, entre a malandragem dos moleques de rua e o carinho da madrinha”.
Imerso no dia a dia atribulado da população, Gonzaguinha ia aprendendo a dureza de uma vida marginal, a injustiça diária vivida por uma parcela da sociedade que não tinha acesso a nada. Foi nesse contexto que o jovem amadureceu a militância para mudar a política, sendo a música sua principal arma.
Muito estudioso, queria ser economista. Na Faculdade de Ciências Econômicas Cândido Mendes (RJ) conheceu e se encantou por Karl Marx. Na faculdade fundou o M.A.U. (Movimento Artístico Universitário) com Ivan Lins, Aldir Blanc e outros colegas. Contratado pela Rede Globo para o programa “Som Livre Exportação”, o grupo começou bem, mas a emissora quis cortar alguns artistas do grupo. Gonzaguinha liderou a campanha ou ficam todos ou não fica ninguém. Assim a rede não cedeu.
Dono de uma voz memorável, marcou a Música Popular Brasileira como um dos maiores expoentes das canções de protesto e de amor, sempre atingindo as angústias existências das paixões.
Em 1968, participou de seu primeiro Festival Universitário de Música Popular do Rio de Janeiro. Chegou até a final com a canção Pobreza por Pobreza. Um ano depois, venceu o mesmo festival com O Trem.
“É que eu quero ver quem recordará”
Nos anos 70, nem a censura segurava o talento do jovem. Sua nítida repugnância ao governo militar que carregava em suas letras o fez ser muito conhecido na censura do Dops. Para gravar 18 músicas, Gonzaguinha submeteu 72 à analise – 54 foram vetadas. Fazia dois ou três discos para poder gravar um. No entanto, sua criatividade fez passar letras como Recado (1978): “Se me der um beijo eu gosto/ Se me der um tapa eu brigo/ Se me der um grito não calo/ Se mandar calar mais eu falo (…) Verbo eu pra mim já morreu/ Quem mandava em mim nem nasceu” e Comportamento Geral: “Você deve abaixar a cabeça/ E dizer sempre muito obrigado/ São palavras que ainda lhe deixam dizer/ Por ser homem bem disciplinado”. Na canção Pequena Memória para um Tempo sem Memória deixa uma linda homenagem os heróis brasileiros que enfrentaram a ditadura: “Ê ê, quando o Sol nascer/ É que eu quero ver quem se lembrará/ Ê ê, quando amanhecer/ É que eu quero ver quem recordará/ Ê ê, não quero esquecer/ Essa legião que se entregou por um novo dia/ Ê eu quero é cantar essa mão tão calejada/ Que nos deu tanta alegria/ E vamos à luta.”
Outro papel importante que Luiz Gonzaga Junior cumpriu foi entre seus companheiros de música. Fundou junto com amigos a Sombrás (associação de músicos) e conseguiu avançar no debate dos direitos autorais das composições. Ele também conseguiu fundar seu próprio selo fonográfico para editar suas músicas, chamava-se Moleque. Gonzaguinha dispensou os empresários e essa atitude foi fundamental para sua carreira. Segundo ele, a vantagem de trabalhar independente dos empresários é poder levar a música para um número maior de pessoas e recuperar a base humana do trabalho.
Com o começo da redemocratização, suas letras ganharam romantismo. Muitos casais tiveram suas trilhas sonoras recheadas de canções do Gonzaguinha. Os relacionamentos que teve, lhe deram inspiração para retratar muito bem a paixão entre amantes. Como nas letras Sangrando, Eu Apenas Queria que Você Soubesse, Começaria Tudo Outra Vez e Diga Lá, Coração: “Diga lá, meu coração/ Conte as estórias das pessoas,/ Nas estradas dessa vida./ Chore esta saudade estrangulada/ Fale, sem você não há mais nada/ Olhe bem nos olhos da morena e veja lá no fundo/ A luz daquela primavera”.
“Uma canção de amor também é aquela que canta a luta da vida (…) o suor do trabalho/ O calo das mãos de quem canta a esperança (…) com garra e fé”, diz a letra de Uma Canção de Amor. Gonzaguinha levou a sério esses versos a vida inteira, pois representam o orgulho que tinha dos trabalhadores brasileiros e da batalha diária por uma vida digna. Sempre consciente de que a transformação da sociedade chegaria com muita luta. Mostra sua esperança na letra E Vamos à Luta: “Eu acredito é na rapaziada/ Que segue em frente e segura o rojão/ Eu ponho fé é na fé da moçada/ Que não foge da fera, enfrenta o leão/ Eu vou à luta com essa juventude/ Que não corre da raia a troco de nada/ Eu vou no bloco dessa mocidade/ Que não tá na saudade e constrói/ A manhã desejada”.
O Moleque Luizinho faleceu em um acidente de carro no ano de 1991, no auge da carreira. Em sua última música de sucesso É, deixa a mensagem: “A gente quer valer o nosso amor/ A gente quer valer nosso suor/ A gente quer valer o nosso humor/ A gente quer do bom e do melhor (…) A gente não tem cara de panaca/ A gente não tem jeito de babaca (…) A gente quer viver pleno direito/ A gente quer é ter todo respeito/ A gente quer viver numa nação/ a gente quer é ser um cidadão”.
Emiliano Zuchetti, militante da UJR, Porto Alegre