O projeto “Escola sem Partido”, além de contar com aumento expressivo no número de simpatizantes, é um projeto que, por não ter sido contextualizado e muito menos questionado, acabou sendo considerado bom. O objetivo deste artigo é mostrar que o “Escola sem Partido” não é um bom projeto, não apenas por sua incoerência, mas sim pela falta de bases de sustentação. Trata-se de algo infundado, sem dados e informações que atestem sua importância. O que é possível perceber é que temos mais um indício de espetacularização da política, em seu sentido mais pobre.
Com base nisso, fizemos uma análise relativamente abrangente do site oficial do projeto – www.escolasempartido.org –, e o que percebemos são afirmações apoiadas em representações enganosas, além de um festival de achismos. Cabe, portanto, indagar o que leva algo tão rasteiro a ganhar tamanha expressão. Enquanto educadores, temos a tarefa de desconstruir o projeto, mostrando, com base em fontes concretas, que seus proponentes nada entendem de educação, legislação educacional, escola e universidade.
A primeira evidência de um total desconhecimento sobre processos de escolarização em geral, independente do nível de ensino, consiste nas formas de representação dos docentes e discentes. O (a) docente aparece como detentor de todo o saber e como um ser com a capacidade de manipulação. O (a) estudante aparece como a pessoa que não passa de um receptáculo daquilo que é dito pelo (a) professor (a) em sala de aula. Trata-se de uma completa ignorância sobre as formas como um dos criadores do projeto enxerga professores, professoras, alunos e alunas.
É visível o aumento na capacidade de questionamento de alunas e alunos atualmente. Há mais questionamentos, mais indagações e uma maior abertura no caso de um (a) estudante desejar ou precisar questionar o que foi dito pelo (a) docente, algo que não ocorria em décadas anteriores. Quem, de fato, estuda educação e trabalha em escola percebe mudanças – positivas, diga-se de passagem – na relação entre professores e alunos.
Além disso, afirmar que os professores e professoras formam um bloco politicamente coeso é algo sem o menor cabimento. Quem vive no meio docente sabe: há professores de todos os posicionamentos políticos possíveis. E todos têm a liberdade de se expressar politicamente do mesmo modo. Esse discurso de “professores vermelhos” que manipulam alunos e perseguem professores inimigos não passa de um artifício rasteiro com o objetivo de legitimar um projeto que não possui fundamentos.
Embora tenhamos realizado uma análise abrangente do site do “Escola sem Partido”, devemos, de antemão, admitir que não foi possível analisar o site por completo. Optamos por algumas partes, com destaque para os itens “quem somos”, “objetivos”, “FAQ” (Frequently Asked Questions) e “relatos” dos estudantes que julgam que alguns professores e algumas professoras assumiram uma postura de doutrinação de estudantes. Essa última seção é mais complexa, na medida em que tais alunos e alunas mesclam tentativas de cientificismo barato, frustrações pessoais e desabafo. Nestes relatos, torna-se fácil perceber o elevado grau de lunatismo.
Os autores do projeto “Escola sem Partido”, de modo aparentemente proposital, fazem uma confusão entre a “liberdade para ensinar” e a “liberdade para aprender”, ambas previstas na Constituição Federal (Art. 206) e na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN – Lei N. 9394/96). A “liberdade para ensinar” está baseada no processo formativo do (a) docente, incluindo aí sua formação na educação básica, sua formação no ensino superior, seus interesses pessoais e sua trajetória enquanto ser humano.
A confusão se inicia quando os proponentes do “Escola sem Partido” utilizam o artigo 206 da Constituição Federal com o nítido objetivo de manipular informações. O projeto “Escola sem Partido” é contra a doutrinação, mas é totalmente favorável à distorção e à manipulação. Os autores enfatizam a “liberdade para aprender” como se isso significasse a decisão do (a) aluno (a) sobre a aula. Eis a questão: como é que, em uma sala com 30, 40 estudantes, cada um vai decidir de acordo com sua própria concepção de liberdade de aprender?
Na verdade, o que ocorre é que nenhum (a) aluno (a) decide sobre a aula. Em primeiro plano, pode até haver um diálogo entre docentes e aluno (as), e é bom que assim seja. Nada mais saudável que um (a) estudante ter a liberdade de dizer que deseja aprender mais sobre determinado assunto. Se a “liberdade de aprender” coloca a “liberdade de ensinar” em condição de latência, temos um sério embate no interior da própria legislação federal.
Todavia, a “liberdade de aprender” não indica esse poder decisório exclusivo partindo de estudantes. Tal insinuação é provida de má-fé. A “liberdade para aprender” significa a liberdade existente em nosso país para que qualquer tipo de escola, desde que respeitadas as diretrizes necessárias, possa existir. A família de um (a) estudante tem todo o direito de escolher uma escola pública, uma escola privada confessional católica (ou de qualquer outra religião; fontes apontam para colégios espíritas e colégios batistas, por exemplo), uma escola privada não religiosa, uma escola privada preparatória, um colégio militar, uma escola técnica pública, uma escola técnica privada, enfim, todos esses tipos de escolas são existentes no Brasil. Cabe, portanto, à família, de acordo com suas convicções, decidir. Sem dúvida, esse é um pensamento liberal, na medida em que, em parte, isenta parcialmente o Estado, atribuindo ao indivíduo uma responsabilidade que deveria ser do poder público. E, na medida em que o Brasil ainda é um país em que, devido às desigualdades de renda, muitas famílias dependem desse Estado, isso é muito grave. Mas é a “liberdade para aprender” garantida por lei. Em suma: todo e qualquer tipo de escola pode ser criado, desde que a legislação educacional seja respeitada.
Essa confusão entre “liberdade de ensinar” e “liberdade de aprender”, com a distorção do sentido desta, é a base do projeto “Escola sem Partido”. É a partir dessa confusão que o discurso da doutrinação e da ideologia emerge, e de modo muito eficaz. Basta ver o número de adeptos.
Partindo agora para alguns trechos mais específicos. Na seção “quem somos”, localizamos o seguinte: “Inspirados nessa bem-sucedida experiência, decidimos criar o escolasempartido.org, uma associação informal, independente, sem fins lucrativos e sem qualquer espécie de vinculação política, ideológica ou partidária”. Se a ideologia pode ser considerada um sistema de valores que um determinado grupo considera pertinente ou até mesmo ideal para a vida em sociedade, o “Escola sem Partido” possui sim um viés ideológico.
Já na seção “objetivos”, há os seguintes tópicos:
- “Lutamos pela descontaminação e desmonopolização política e ideológica das escolas”;
- “Lutamos pelo respeito à integridade intelectual e moral dos estudantes”;
- “Lutamos pelo respeito ao direito dos pais de dar aos seus filhos a educação moral que esteja de acordo com suas próprias convicções”.
Como dito anteriormente, os autores do “Escola sem Partido” ignoram por completo temas como escola e formação docente. Cria-se um estereótipo totalmente equivocado de professores e professoras e tal estereótipo passa a ser o alvo do ataque. E esse estereótipo teria um monopólio político e ideológico. As escolas possuem professores e professoras das mais variadas correntes ideológicas. Pensar em qualquer tópico da pauta conservadora significa recordar imediatamente de algum comentário feito por algum (a) docente. Já ouvi, por exemplo, que deveria haver (mais) um golpe militar, pois o Brasil não pode se tornar uma nova Cuba. Foi um comentário feito por um professor.
O respeito à integridade intelectual e moral dos estudantes, outro ponto a ser defendido pelos autores do projeto, também é defendido por professores e professoras que atuam de forma séria. Inclusive, os autores do projeto deveriam não ferir a integridade intelectual e moral de toda uma população, fazendo questão de desprezar fatos que certamente são negativos para a educação. O quadro da educação atual aponta para falta de merenda e para o desvio da verba da mesma para fins privados, para escolas sem condições físicas de funcionamento, para professores, professoras e demais profissionais da educação recebendo seus salários em parcelas, dentre outros problemas. Isso significa ferir a integridade dos alunos, embora tais mazelas não sejam sequer mencionadas no site escolasempartido.org.
O respeito ao direito dos pais de dar aos seus filhos a educação moral que esteja de acordo com suas próprias convicções, o último dos objetivos do projeto, está presente. Basta que os pais e mães achem uma escola de acordo com suas convicções. Trata-se do que foi dito quando a noção de “liberdade de aprender” foi aqui explicada. Se o Estado é laico e se existem pais católicos, por exemplo, basta que tais pais busquem escolas católicas para que seus filhos sejam matriculados. Simples. O que não pode é que a família de uma religião A acredite que um professor da religião B tenha que se tornar um membro da religião A para que lecione para sua prole. Esbarra-se no problema anteriormente mencionado: o projeto “Escola sem Partido” acredita que a “liberdade de aprender” suprime a “liberdade de ensinar”, o que seria um verdadeiro absurdo.
Na seção FAQ, há a seguinte questão: “(…) o que há de errado em querer despertar a consciência crítica dos alunos?” Em seguida, a resposta: “Não haveria nada de errado, se esse despertar da consciência crítica não consistisse apenas e tão somente em martelar ideais de esquerda na cabeça de estudantes”.
Mais uma vez, é possível notar a criação do estereótipo do professor, como se todos os professores e professoras fossem de esquerda. Pelo visto, o site insinua que todos os professores e professoras devem afirmar e acreditar que o salário mínimo é alto, que as pessoas moram em comunidades carentes e insalubres por terem trabalhado pouco, que bandido bom é bandido morto, que todo e qualquer governo pode remover casas em nome de obras voltadas a grandes eventos, que imigrantes são a escória (palavras de um deputado federal descendente de italianos), que a distribuição de recursos no planeta é perfeitamente igualitária, que as cotas não devem existir já que todos são iguais em termos de inteligência (e aí ainda devemos completar que as condições de vida de brancos e negros, no Brasil, são idênticas), dentre outros absurdos. Naturalizar tais problemas não significa ser neutro, mas sim cínico. Fora que, como sabemos, tal naturalização é, sim, partidária e apoiada em ideologias.
Indo aos “Relatos”, é possível perceber o caminho trilhado em direção à insanidade. O lunatismo presente nos relatos pode ser evidenciado pelo relato da mãe de uma aluna do sistema COC de ensino. Afirma a mãe que as apostilas desse sistema de ensino apresentam conteúdo “pornô-marxista”(?). Nota-se aí a contradição: uma das maiores empresas educacionais do Brasil – talvez a maior – difundindo o marxismo?
Além do conteúdo “pornô-marxista” da apostila de uma grande empresa vendedora de serviços educacionais, temos outro relato: “Tínhamos em excesso Marx, Foucault, Chomsky, Chauí e Freire. Imergimos na burrice, na perda de tempo prático e na nulidade constante. A visão da educação clássica é tida como ultrapassada e incoerente por muitos”. Em primeiro lugar, se a pessoa que lê Marx, Foucault, Chomsky, Chauí e Freire está “imergindo na burrice”, é de suspeitar que ela não tenha entendido nada dos textos lidos. Preocupante. Em segundo lugar, basta que cada um procure livros que sejam interessantes, o que é uma percepção individual. Qualquer estudante sério (a) vai em busca de materiais que, indicados ou não pelo (a) docente, são tidos como enriquecedores. Trata-se de competência. Quando cursei a graduação, minhas leituras não ficaram restritas ao que os professores mandavam ler. Eu, por conta própria, busquei materiais novos.
Para finalizar, temos um relato de um professor de matemática de Recife, que nos dá dez dicas para que possamos seguir no magistério: “1- seja ateu; 2- seja a favor do homossexualismo (sic); 3- se for professor de história, seja comunista; 4- sempre fale mal das religiões; 5- idolatre Paulo Freire; 6- acredite religiosamente em Freud e Darwin; 7- não leia a Veja; 8- leia Diplomatique; 9- vote no PT; 10- sempre faça uma revisão com a cara da prova”. Se o professor postou tais dicas no site escolasempartido.org, não é necessário explicar que o docente fez aí uma ironia de péssimo gosto. Um relato desse tipo, que mistura frustrações pessoais e mau gosto humorístico, dispensa comentários. Como já insistimos aqui, a liberdade de pensamento está presente nas escolas. O posicionamento político é livre. As escolas estão recheadas de professores conservadores, isso é indiscutível. O sujeito não precisa ser a favor da homossexualidade; se ele não for contra e se não desejar o aniquilamento da comunidade LGBT – como já vem ocorrendo –, já está bom.
Chega a ser irônico que um programa tão infundado se torne tão forte. Mas professores e professoras não podem se render. O debate é necessário e urgente para que a desconstrução do projeto se torne uma realidade.
Giam C. C. Miceli, professor de Geografia da rede municipal de Itaboraí, pós-graduado em educação e mestre em História da Educação.
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