A Armênia, ao sul da Rússia, conseguiu sua autonomia a partir da queda do czarismo (fevereiro de 1917) e do final da Primeira Guerra Mundial, com os tratados de Brest-Litovsky (março de 1918 [paz entre russos e turcos]), de Batum e de Sèvres (paz entre turcos e armênios do Cáucaso). Foi estabelecido o governo da Transcaucásia, o qual englobou georgianos, armênios e tártaros (azeris[1]), tendo como capital Tíflis[2], e rapidamente recebeu a colaboração de França e Inglaterra. Porém, disputas internas e externas levaram ao enfraquecimento do governo e ao início de conflitos pela posse de alguns territórios do Cáucaso e da Anatólia. A Revolução Russa, de Outubro de 1917, abriu novos horizontes de justiça social em todos os territórios do antigo Império Russo, e os vários povos passam a debater sobre sua autodeterminação político-territorial[3], defendida pelos social-democratas[4] revolucionários, e a autonomia nacional-cultural[5], defendida pelos grandes proprietários rurais e pela elite militar remanescente do czarismo, os quais se organizam no partido armênio Dashnak.
A Armênia nasceu no leste da península da Anatólia e ao longo das montanhas do Cáucaso, no séc. VI a.C. Aderiu ao cristianismo em 301 e cria sua própria Igreja, a Apostólica Armênia. É ocupada por diversos povos, entre persas, romanos, turcos e russos. A Armênia pós-guerra é fundada em 28 de maio de 1918, resultado da desintegração da Comissão Especial da Transcaucásia, da retirada das tropas czaristas e do acordo das oligarquias locais com a nova Entente, a qual a ocupa durante a guerra civil russa. Os interesses franceses na região baseiam-se na espoliação dos territórios antes pertencentes ao Império Turco-Otomano e Russo. Líbano e Síria passam a ser colônias do governo de Paris no Oriente Médio. O novo país armênio, que ficara séculos sob os domínios do czarismo e dos turcos, ficou temporariamente na mão da elite econômica local e francesa. Milhares de armênios fogem da Anatólia, por causa do genocídio promovido pelo governo turco-otomano, em busca de abrigo na Armênia caucasiana. Em 26 de outubro de 1918, 30 mil armênios são mortos em Baku, capital do Azerbaidjão (o qual se aliou com os turco-otomanos após a retirada das tropas czaristas), e a instabilidade regional permanece mesmo após o fim da guerra mundial. A nova Armênia nasce do sangue de milhares de seus filhos, porém o povo luta por uma revolução popular que conquiste paz e terra a todos, e questiona o governo, comandado pelo Dashnak, por vacilar em realizar mudanças profundas na sociedade, tais como as que ocorriam na Rússia soviética.
Os sovietes[6] armênios exigem a nacionalização e coletivização das fazendas e armazéns, historicamente sob o controle de poucas famílias nobres (armênias e russas), como resquícios de um sistema semifeudal no Cáucaso. Os bolcheviques armênios denunciam o envolvimento do imperialismo inglês na criação das novas instituições públicas e no fortalecimento das elites locais. Em 26 de julho de 1918, os nacionalistas burgueses tomam o controle do soviete de Baku, com apoio de ingleses e turcos, e é instituída a Ditadura Centro-Cáspia, com as forças inglesas do general Thompson ocupando Baku. O comissário bolchevique de Baku, Stepan Shahumyan, é assassinado por ordem do general. A guerra civil se alastra por toda a Transcaucásia, os armênios refugiados continuam em péssimas condições, as tropas estrangeiras espoliam todos os recursos, desde petróleo a alimentos, e o número de refugiados na Armênia aumenta a cada dia. O governo armênio tentava solucionar os problemas com base na implantação de um regime burguês representado no nacionalismo do partido Dashnak. Ainda na publicação de 1913, “O Marxismo e o Problema Nacional e Colonial”, J. Stálin assinalava: “A burguesia da nação oprimida, que se vê acossada por toda a parte, entra naturalmente em ação. Apela para ‘os de baixo do seu país’ e principia a falar de ‘pátria’, ao pretender fazer da sua própria causa a causa de todo o povo. Recruta para si um exército entre seus ‘compatriotas’, no interesse da ‘pátria’. E ‘os de baixo’ nem sempre permanecem surdos aos seus apelos, e se agrupam em torno da sua bandeira: é que a repressão de cima também os afeta, provocando o seu descontentamento.”[7].
A gripe espanhola, o inverno rigoroso, o domínio burguês e a invasão imperialista só aumentavam a insatisfação dos trabalhadores e dos refugiados. Na primavera de 1919, mais de 150 mil refugiados já haviam morrido de fome e doenças, e, enquanto os ingleses enviavam gigantescos carregamentos de armas e munições, nenhuma ajuda humanitária era enviada. Os EUA enviaram um carregamento de trigo no final de 1919 a Yerevan[8], porém as massas insatisfeitas começaram a se insurgir. Em 24 de setembro de 1920 estoura mais uma guerra entre Armênia e Turquia, quebrando o tratado de Batum e Sèvres. O objetivo do Dashnak era reconquistar territórios historicamente armênios, incluindo a maior parte das províncias de Van, Bitlis e Erzurum, contudo não levavam em consideração a situação política desfavorável e a crise econômica que devastava o país. A Turquia avançou com suas tropas, e, em 02 de dezembro de 1920, foi assinado o Tratado de Alexandropol[9], que pôs fim às hostilidades turco-armênias e trouxe prejuízos ao povo da Armênia, como perda de territórios, causadas pela política expansionista do Dashnak de criar a “Grande Armênia”, do Cáucaso até o mar Mediterrâneo.
Em fevereiro de 1920, os bolcheviques do Cáucaso, de origem armênia, fundam clandestinamente o Partido Comunista da Armênia (PCA). Seu principal objetivo era libertar os trabalhadores armênios da espoliação do poder latifundiário e derrubar o governo colaboracionista do Dashnak, subserviente aos militares czaristas, aos seus interesses imperialistas e incendiários de guerra. Em primeiro de maio do mesmo, milhares de trabalhadores, organizados pelo PCA, se rebelam contra a burguesia armênia e as tropas brancas, com o movimento se espalhando por diversas cidades do país. Um comboio blindado das forças armênias adere aos revolucionários, e as forças insurretas instituem o Comitê Revolucionário (Revkom), proclamando a República Socialista Soviética da Armênia, em Alexandropol, a 10 de maio. O Dashnak dissolveu o parlamento e mobilizou todas as forças armênias e brancas contra a revolta popular. Em 14 de maio, após duros combates em Alexandropol, os revolucionários evacuam a cidade e ela é reocupada pelo Dashnak. Milhares de bolcheviques são torturados e assassinados pelas forças da reação, junto aos grandes heróis bolcheviques Sargis Musayelyan e Ghukas Ghukasyan, principais líderes da insurreição popular.
A situação na Armênia deteriora-se, com o Dashnak mostrando sua verdadeira face antipopular e vilipendiosa, mantendo a terra sob o controle total dos latifundiários. Contudo, as tropas brancas czaristas e seus correligionários imperialistas são derrotados em todas as frentes de batalha da Rússia Soviética. Em novembro de 1920, o 11º Exército Vermelho entra em Yerevan com amplo apoio popular e destitui o Dashnak do poder, instituindo um governo socialista, refundando a República Socialista Soviética da Armênia e entregando a terra aos camponeses, liberdade aos trabalhadores e alimento ao povo da Armênia, o qual edificou, com grande vigor, as fábricas nas cidades e a colheita no campo. Após vários anos de guerra, com massacres e deslocamentos forçados de milhões de armênios e a derrota da burguesia e do exército branco dos oficiais czaristas, o povo armênio pode começar uma nova etapa na sua existência histórica, mantendo seus costumes e tradições, honrando a memória das vítimas do genocídio e, principalmente, cerrando as fileiras do internacionalismo proletário com milhões de trabalhadores de diversas nacionalidades, baseados no espírito de solidariedade e respeito aos povos do mundo.
Em 2010, ao longo de uma manifestação contra o governo, o primeiro presidente da Armênia e líder da oposição Levon Ter-Petrosyan declarou: “Alguns dos líderes do Dashnak, retrospectivamente, confessaram que se tivessem entregado o poder aos bolcheviques em maio de 1920, a Armênia não teria perdido as regiões de Kars, Ardahan, Surmalu e Nakhichevan, e, nesse caso, a solução da questão de Karabakh[10] poderia ter sido também diferente. No entanto, ao invés de fazer isso, eles impiedosamente massacraram os líderes da Revolta de Maio e lançaram centenas de participantes nas prisões, insensatamente provocando ira e hostilidade da Rússia e do povo, colocando as coisas moderadamente, e impondo um preço amargo para nossa pátria.”
Matheus Tavares Nascimento, estudante da UFPA e militante do PCR
1 Azeris: turcos seljúquidas (tártaros), seguidores do islamismo xiita, que se estabelecem à margem ocidental do mar Cáspio no século XIII
2 Tíflis: atual Tbilisi, na Geórgia, no extremo leste da Europa
3 autodeterminação político-territorial: tese apresentada por J. Stálin na publicação “O Marxismo e o Problema Nacional e Colonial”, na qual uma nacionalidade é determinada por um conjunto de fatores, como comunhão de território, idioma, fé, cultura e relações econômicas, isto é, a autodeterminação dos povos só pode ser alcançada de acordo com a existência de tais condicionantes, e, cada nação tem o direito de se separar ou de se unir com outra, de acordo com o interesse do seu povo. Os comunistas tem o dever de defender o internacionalismo proletário, ou seja, nenhuma particularidade nacional pode estar acima dos interesses gerais dos trabalhadores dos cinco continentes, porém tais particularidades constituem patrimônios inalienáveis do povo e somente o respeito mútuo entre as nações pode garantir suas vigências. Stálin escreveu, na pág. 84 do referido livro: “Temos, pois, o princípio da coesão internacional dos trabalhadores como ponto indispensável para a solução do problema nacional.”
4 Social-democratas: designação formulada por Friedrich Engels na fundação da II Internacional (I. Socialista), posteriormente mudada para ‘comunistas’, durante a fundação da III Internacional (I. Comunista), como forma de separar os revolucionários dos revisionistas social-democratas que tomaram o controle da Internacional Socialista
5 Autonomia nacional-cultural: tese apresentada pelos social-democratas austríacos em 1897, que reduz o problema nacional a medidas tomadas por corpos institucionais que, independentemente da classe do indivíduo, de seu território, idioma e laços econômicos, almeja unificar a nacionalidade em prol de seus interesses culturais, religiosos e acadêmicos, como particularidades, e desagrega o proletariado internacional em “clãs” nacionais e o joga no isolacionismo
6 Sovietes: conselho de representantes distritais ou nacionais eleitos por operários, camponeses e soldados, nas repúblicas soviéticas
7 Josef Stálin, “O Marxismo e o Problema Nacional e Colonial” Ed. Vitória Ltda, pág. 22
8 Yerevan: capital da Armênia
9 Alexandropol: atual Gyumri, na Armênia
10 A Questão de Nagorno-Karabakh: a região de Nagorno-Karabakh, habitada por armênios, é um enclave no território azerbaidjano entregue à Armênia em 1921 por um conselho regional do Cáucaso, escolhido como mediador na disputa. Logo após o acerto, as duas nações passam a integrar a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) e Nagorno-Karabakh cedido ao Azerbaidjão, como uma região autônoma. Em 1988, já no governo anticomunista de Gorbatchov, a Armênia exige o território de volta. Estoura a guerra com a saída do exército soviético de Nagorno-Karabakh, após a dissolução da URSS. A trégua, em 1994, é favorável à Armênia, que conquista um corredor que a liga ao enclave e governa de fato a região desde 1992. Almanaque Abril Mundo 2001 pág 24