Vida de presidiárias

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Detentas Rio

O sistema prisional no Brasil é desumano. Não há compromisso sério por parte do Estado para inserir essa massa carcerária de volta à sociedade. A sua linguagem é a da repressão, da condenação.

Encarceram homens e mulheres, em sua maioria pobres e negros, por delitos que não comprometem a segurança e o bem-estar da sociedade. “No que se refere ao gênero, à violência à mulher, que já vive encarcerada de diversas maneiras por essa sociedade, esses muros ficam mais visíveis”, afirma Graziela Contessoto Sereno, que trabalha no Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura do Rio de Janeiro.

A Verdade visitou o presídio feminino de Bangu, na capital fluminense. Lá constatamos a precariedade da situação em que vivem as detentas. Celas superlotadas por mulheres jovens envolvidas, na maior parte dos casos, com o tráfico de drogas. À medida que avança a idade, os delitos ou atos infracionários estão relacionados à questão do parceiro ou filho. Um reflexo dessa sociedade machista.

No Rio de Janeiro existem quatro unidades prisionais que recebem mulheres. Um total de 1.837 pessoas. Desde 2014, a população carcerária feminina aumentou numa proporção maior que a masculina. Para Graziela, os fatores são diversos. “Vivemos numa sociedade em que se busca tratar o problema social com prisões e não tratando as pessoas. Uma questão muito séria está relacionada à lei de drogas, que criminaliza qualquer comportamento nesse sentido como crime hediondo. A outra questão é a seletividade penal. A mulher pobre e negra é o perfil mais frequente nas unidades prisionais”. Essa realidade é descrita em detalhes no relatório temático Mulheres, Meninas e Privação de Liberdade, lançado em 2016, pelo Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura.

Graziela apresenta outras questões do relatório. “Os presídios não levam em consideração essa peculiaridade do que é ser mulher. Elas recebem apenas quatro absorventes por mês e só no presídio que possui gestantes existe um médico, que atende uma vez por semana; nas outras unidades não há. Normalmente a equipe de saúde é formada por técnicos de enfermagem e enfermeiros. O acesso a esses profissionais é feito através bilhetes, entregues pelas presas às guardas, que os encaminham aos profissionais. O contato humano do profissional da saúde com a presa depende da guarda para que aconteça”, explica.

 A crise financeira do Estado do Rio de Janeiro afeta diretamente os presídios. As péssimas condições na alimentação e a falta de profissionais na área da saúde e em outros setores acabam potencializando os maus tratos nas unidades prisionais. “Um exemplo está ligado aos nossos relatórios. A Defensoria Pública solicitou que houvesse pelo menos um ginecologista em cada unidade. Mas a juíza indeferiu esse pedido e justificou que se falta ginecologista para o atendimento das mulheres que estão fora dos presídios, como garantir para as que estão presas? Essa precarização dos serviços acaba justificando a barbárie”, acredita Graziela.

A vida na prisão

No presídio feminino Talavera Bruce, visitado por nossa equipe, conhecemos as histórias dessas mulheres sofridas, corajosas, humanas, que nos receberam meio desconfiadas, um pouco monossilábicas, mas que, aos poucos, foram se sentindo à vontade e expuseram suas perdas, esperanças, arrependimentos e suas confianças numa nova vida.

Rosângela Gomes Pereira, 59 anos, é uma dessas mulheres. Está presa desde 1995. Não tem filhos. Na época tinha um companheiro e morava com ele. O pai bebia muito e batia nos irmãos e na mãe. “Saí de casa com 10 anos. Eu trabalhava muito e era espancada constantemente. Ele batia com bico de boi em qualquer parte do corpo nos quatorze filhos e na minha mãe. Fui pra rua e me juntei com as outras crianças. Dormia em caixas de papelão, pedia comida nos restaurantes, roupas na casa dos outros, ia vivendo assim. Às vezes, ele me pegava na rua, me batia e me prendia amarrada no esteio do varal, onde passava o dia inteiro. Ali eu comia, bebia, fazia xixi e cocô nas calças. Mas não adiantava. Quando ele me desamarrava, fugia de novo. Assim vivi durante muitos anos. Na rua, achava carinho com aquelas crianças. Comecei a cheirar cola. Depois, para sustentar o vício, comecei a praticar pequenos furtos. Assim fui vivendo na rua até a primeira prisão, com 20 anos, em Minas Gerais, onde fiquei seis anos”, relata.

Rosângela ficou na rua dois anos antes de ser presa. A rua e a prisão foram as suas escolas. Já tem mais de 20 anos na prisão. Nunca recebeu visita ou correspondência. Na realidade, o único contato que ainda manteve foi com a mãe, que enviava, às vezes, umas poucas cartas escritas por outra pessoa.

Nascida e criada em Petrópolis, região serrana do Rio de Janeiro, a família de Rosângela sofreu uma tragédia em 2001, durante as fortes chuvas que castigaram a cidade. Mais de 360 pessoas morreram e 400 ficaram desabrigadas. “Trinta e nove pessoas pertenciam à minha família. Sei que ainda tenho um irmão e uma irmã que estão vivos, mas não tenho contato”.

Quando perguntada sobre o porquê de nunca ter recebido visita, de pronto responde que, no começo, era muito dolorido: “Pensava que minha família não gostava de mim, nunca veio me ver. Hoje estou acostumada”, diz sem convicção, com os olhos marejados.

Na reflexão que faz dos acontecimentos de sua vida, de como é viver durante tanto tempo na solidão: “Posso falar a verdade? Estou muito arrependida, preferia ter ficado em casa, aguentando aquelas pancadarias, pois meus irmãos aturaram. Ninguém foi pra vida do crime. Eu fui a única. Todo mundo lá em casa é trabalhador, sempre muito pobre, ganhando pouco, mas ninguém manchou a família como eu”.

As lágrimas de Rosângela refletem sua intensa dor. Ninguém se acostuma com a falta de amor. “Amar uma pessoa que me ajuda é fácil, amar uma pessoa que me deseja o mal, me causa tortura, é difícil. Hoje consigo lidar com esses sentimentos. A mágoa traz doença, depressão. Para vocês verem: estou há 22 anos presa, com condicional negada mais uma vez”.

Há tempos, os objetivos dela estão bem claros. “Tenho um dinheiro guardado desses anos trabalhados aqui. Penso em construir um quartinho com banheiro. Sei fazer trabalhos manuais como crochê e quero frequentar a igreja”.

“Conheço crimes piores que o meu. Pratiquei furtos, realizei um assalto, mas não portava arma, e fui presa por seis anos em Minas Gerais. Agora estou na prisão por conta da droga, por causa de dezessete gramas de maconha e um cigarro. A juíza me condenou por tráfico de drogas. Nunca fui traficante, era apenas usuária”.

Nossa conversa com Rosângela terminou com uma mensagem que ela enviou ao jornal: “Gostaria de parabenizar o jornal por esse gesto humano. São tão poucos os que se interessam pelo nosso estado no cárcere!”.

“Não tirei de quem tinha e sim de pobre, de gente que trabalhou a vida inteira.”

Também conversamos com a detenta Márcia Valéria Gonçalves Dias, de 44 anos. Três anos e dez dias de prisão, quando a entrevistamos.

Bem articulada, Márcia relata que ganhou a condicional e não saiu. “Não fui porque cometi crimes”, disse. Nesse momento, as lágrimas do arrependimento chegaram com força. “Sou muito consciente das coisas que fiz. Achei que a pena que recebi foi pequena diante do mal que causei. O meu crime foi estelionato. Não tirei de quem tinha, e sim de pobre, de gente que trabalhou a vida inteira pra realizar o sonho de um filho”, conta.

Márcia detalha o que a levou à prisão. “Sempre tive acesso a muitos lugares, sempre falei muito bem. Criava uma relação de confiança e aplicava o golpe. Como nunca tive essas coisas, achava que tinha que fazer isso pra realizar os sonhos dos meus filhos, tirando os sonhos dos filhos dos outros. Isso passou a me incomodar muito quando fui presa. Na realidade, agradeço por estar na prisão. Quem sabe o que planta não teme a colheita. Sabia o que estava plantando e sabia que um dia teria que pagar. Queria uma casa de luxo. Aqui aprendo que posso morar num quartinho de aluguel”, afirma.

Mãe de quatro filhos, ela diz que prefere não ter contato com eles. “Nunca aceitei que os meus filhos viessem me visitar porque eles não têm culpa de nada. Eles têm que seguir com suas vidas. Como posso exigir que eles entrem numa cadeia?!”.

Sua vida nunca foi fácil. “Fui criada por duas senhoras bem idosas. Minha mãe é prostituta, está com 58 anos. Aparecia e sumia, sempre assim. Teve 10 filhos e deu todos. Desde nova nunca tive amor próprio. Sempre era apontada como a filha da costureira, das mulheres que me adotaram, ou como a filha da prostituta. Esses são traumas que carrego até hoje”.

Sobre a vida na cadeia, Márcia é direta: “A vida no cárcere é muito difícil. As pessoas brigam sem motivo, mutilam, jogam água fervendo, cortam com gilete, se juntam para bater na outra como se fosse saco de batata. A prisão é onde o ódio habita”.

Quando perguntamos se ela não achava que estava na hora de se libertar do chicote e reconstruir a vida fora da prisão, ela responde: “Sempre me neguei a sair daqui por medo. Medo da vida que está me esperando lá fora. Não medo de cometer crimes, disso estou curada. Fiquei sete meses sem notícias dos meus filhos. Quase fiquei louca. Meu marido falou para os meus filhos que eu tinha morrido e sido enterrada como indigente. As cartas que eu enviava para eles eram rasgadas pelo meu sogro. Através de uma amiga, meus filhos souberam que eu estava viva e continuava presa. A minha cela é um verdadeiro bunker. Estou isolada, a porta é um chapão. Quando fecham e trancam é desesperador, uma agonia que vocês não têm ideia”.

Apesar disso, Márcia não abandona a esperança de uma nova vida. “Quero sair daqui e reconstruir minha vida. Quero encontrar em mim o que nunca encontrei. Meus filhos seguiram suas vidas. Quero reconstruir a minha moral. No dia que sair da cadeia, espero me libertar da minha prisão. O que me sustenta esse tempo todo é o amor pelos meus filhos. A minha esperança vem desse amor, um amor que liberta”.

 O sistema prisional brasileiro não reeduca, ao contrário, alimenta o nosso sentimento mesquinho, perverso, nos afasta do amor. Mesmo assim, numa atitude de rebeldia, ainda somos capazes de uma gentileza, de uma ternura, de expressar com lágrimas e abraços a nossa esperança. Apesar do enorme sofrimento do encarceramento da alma, ainda somos capazes de lutar pela liberdade de construir uma vida melhor.

Denise Maia, Rio de Janeiro.