O assédio sexual no ambiente de trabalho ganhou destaque na mídia em abril depois que a figurinista Susllen Tonani denunciou ter sido vítima do ator José Mayer dentro dos estúdios do Projac, na Rede Globo. Imediatamente uma rede de solidariedade a Susllen foi organizada por mulheres de todo o país, contando, inclusive, com a participação de várias atrizes globais. O ator foi obrigado a pedir desculpas públicas na esperança de salvar sua imagem, mas não convenceu. Foi posto na geladeira pela emissora, a mesma que em suas novelas e programas de TV incentiva de todas as formas a sexualização feminina e reforça o estereótipo do macho conquistador, tantas vezes interpretado nas telas pelo próprio José Mayer.
Na semana seguinte, a revista Veja publicou longa reportagem sobre o tema, estampando em sua capa várias mulheres famosas que denunciaram assédio no trabalho. Porém, havia um pequeno “problema” nessa capa: a maioria das mulheres que apareciam eram brancas e de classe média, ou seja, o inverso das principais vítimas do assédio sexual no ambiente de trabalho, que são as mulheres pobres e negras.
Esse assédio não vira notícia nacional, nem ganha capas de revistas e jornais. Ao contrário, é ocultado pela hipocrisia da mesma classe dominante que promove e pratica o assédio contra essas mulheres.
Todos os dias, nós, mulheres negras, sofremos com assédio nos lares, escritórios, escolas, fábricas, lojas e repartições públicas em que trabalhamos. A mídia criou e mantém nossa imagem como objeto sexual, algo “exótico”, diferente do padrão de beleza europeu.
Há séculos tem sido assim. No Brasil Colônia, as negras eram utilizadas pelos senhores de escravos como objeto sexual, sendo estupradas e violentadas sistematicamente. Muitos senhores obrigavam suas jovens escravas a terem sua primeira relação sexual com eles. Como os negros eram considerados coisas e não pessoas, essas meninas (geralmente abusadas sexualmente pela primeira vez aos 11 ou 12 anos de idade) nunca podiam expressar sua opinião a respeito de nada. Não tinham escolha. Se recusassem seriam espancadas e torturadas, muitas vezes até a morte.
Atualmente, as mulheres negras formam a base da pirâmide social do país, a população mais explorada. Segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), as mulheres negras recebem apenas 35% do que recebem homens brancos. As negras mais “pobres” recebem um salário 45% inferior ao das brancas, mesmo ocupando cargos iguais. Também somos a maioria nos piores cargos: 71% das mulheres negras estão nas ocupações precárias e informais, contra 54% das mulheres brancas.
Não temos dúvida de que casos de assédio sexual no trabalho devem ser denunciados e combatidos. Porém, denunciar tal violência sem explicar quem são suas principais vítimas é, no mínimo, uma injustiça.
Nesta sociedade que explora e oprime, e que usa gênero, cor da pele e características físicas como motivo para explorar e oprimir ainda mais, devemos ser as primeiras a levantar e lutar. Temos mais motivos que quaisquer outras para nos mobilizarmos e tomarmos a frente na luta contra o racismo, o machismo e a violência.
Lires Kappel, militante do MLB, Rio de Janeiro