Em perfeita harmonia com o método utilizado para ganhar as eleições, Bolsonaro e sua equipe seguem disparando mentiras e desinformação despudoradamente. Seria cômico se não fosse assustadoramente trágico. Os agora agentes governamentais lançam mão de toda a estrutura estatal para destruir rapidamente um complexo sistema de proteção a direitos e o fazem apoiados em falácias e rasgando, uma a uma, as páginas daquele livrinho trintenário chamado Constituição Federal. É uma disputa violenta de ideias, espaços e interesses e, nesse cenário, o grande desafio é fazer chegar ao povo informações verdadeiras e confiáveis.
Uma das mentiras mais bizarras da última semana veio da ala governamental do agronegócio – aquele pessoal cheio de boas intenções, despido de “viés ideológico” e interesses pessoais. O ex-presidente da União Democrática Ruralista e atual secretário especial de Assuntos Fundiários, Luiz Antônio Nabhan Garcia, declarou ao Estadão, em entrevista veiculada no dia 23 de fevereiro, que “hoje o maior latifundiário do País é o índio” e que o governo precisa se livrar de uma maldição ideológica se não quiser fracassar. Fracassar em que sentido? Fica a pergunta.
A fake news da vez é mais um grotesco ataque do agronegócio às terras indígenas, ataque este que, se não combatido veementemente e a tempo, pode gerar consequências deletérias e irreversíveis, não só para os povos indígenas do país como também para os demais cidadãos brasileiros, considerando uma catástrofe ambiental já anunciada e iminente. Comecemos então por corrigir tecnicamente a afirmação do bem-intencionado secretário.
A terras indígenas são, na realidade, terras da União – isso está escrito na Constituição, art. 20, inciso XI. Elas não são de propriedade dos povos indígenas e, sendo assim, não podem ser comercializadas, exploradas ou arrendadas. A estes povos é dado apenas o usufruto destas terras, uma vez reconhecida pelo próprio Estado brasileiro, a sua ocupação tradicional. Esse reconhecimento é feito após sérios estudos técnicos e multidisciplinares, realizados em conformidade com o art. 231 da Constituição e toda uma legislação que disciplina o procedimento de demarcação e homologação de terras indígenas. Sua conclusão costuma demorar anos, às vezes décadas, em um procedimento complexo, no qual se garante a participação de diversos atores, inclusive, os ocupantes não indígenas.
Por serem bens da União e por nela habitarem os mais de 300 diferentes povos indígenas existentes no território brasileiro, as terras indígenas gozam de todo um sistema de proteção que, ao fim e ao cabo, resultam na maior garantia que temos hoje de ainda ter florestas densas de pé, rios e lagos saudáveis e uma preciosa diversidade de flora e fauna, preservando, assim, um bem de uso comum do povo que é o meio ambiente ecologicamente equilibrado, direito coletivo também assegurado em nossa Constituição, em seu art. 225.
Atualmente, cerca de 13% do território nacional corresponde a terras indígenas, são um precioso espaço territorial de preservação ambiental e alvo da cobiça de mineradoras estrangeiras, madeireiros e da biopirataria. Ao atacar as terras indígenas, os advogados governamentais do agronegócio militam a favor de interesses individuais de uma minoria e ignoram o direito de toda uma coletividade com a finalidade largamente anunciada de abrir esses territórios para a exploração extrativista que, a exemplo do triste e recente caso Brumadinho, só gera riqueza para alguns empresários, ao passo que deixa um passivo ambiental de dor, miséria e destruição.
A Amazônia brasileira é onde se localiza boa parte das terras indígenas: 23% de seu território corresponde a terras indígenas. É nesse espaço onde vemos o retrato mais marcante dos serviços ambientais que prestam essas terras ao país. As imagens de satélites comprovam: enquanto cresce aceleradamente o desmatamento na área amazônica, vê-se grandes áreas de mata densa em um significativo contraste com áreas peladas em seu entorno. Ali são as terras indígenas, locais onde muitas vezes não chega o Estado, mas conta com um povo guardião da floresta, que dela depende para continuar existindo física e culturalmente. O grande fracasso para o Brasil, senhor secretário, é não defender essas terras.
Muito ao contrário do que foi dito, os povos indígenas não são latifundiários. Esses povos não são proprietários de grandes extensões de terras utilizadas à revelia do meio ambiente equilibrado, com o uso abusivo de agrotóxicos e outras técnicas altamente lesivas ao solo, ao ar e às águas, pura e simplesmente com fins lucrativos. Os povos indígenas são uma diversidade de cidadãos brasileiros que utilizam com moderação os recursos de seus territórios.
Dizem que uma mentira contada muitas vezes tem o potencial de tornar-se verdade. Façamos então o movimento inverso, repetindo a verdade na mesma proporção. Quem são esses povos chamados de latifundiários, afinal? Conforme o último censo realizado pelo IBGE, no ano de 2010, o Brasil conta com mais de 300 diferentes etnias indígenas, que somam quase um milhão de pessoas, falantes de cerca de 270 diferentes idiomas. São portadores de profundos conhecimentos e de uma diversidade cultural que revela umas das maiores riquezas da formação do povo brasileiro.
Os territórios indígenas são imprescindíveis para a sobrevivência desses povos e, como comprovam todas as evidências, são cruciais para existência de todos nós. Assim, face ao avanço genocida do capital sobre esses territórios, estejamos atentos. Cada ataque às terras indígenas, significa também um ataque a todos nós. Sejamos resistência por eles e por todos nós.
Lúcia Gavião, Belo Horizonte