Liberdade é direito, não dádiva! Ou Cangoma* nos chama!

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Crédito: Jorge Ferreira/ Jornal A Verdade

A primeira proibição do tráfico negreiro no Brasil ocorreu em 1831, mas a lei foi pouco efetiva e já prevendo que isso ocorreria em definitivo, os traficantes de escravos transportaram um número recorde de pessoas em 1829 e só foi proibido definitivamente em 1850. O Brasil foi o país da América que mais sequestrou escravos em África, 4,9 milhões, o último país a abolir este sistema. Há exatos 131 anos, a escravatura era abolida do Brasil. A Princesa Isabel assinou a Lei Áurea em 13 de maio de 1888, entretanto sua chegada não prevê reparações aos ex-escravizados, tampouco projetos de inclusão social e havia ainda aqueles que defendiam indenização para os senhores.

A abolição não foi uma ação bondosa da princesa e do Senado. Também não se explica unicamente pelo esgotamento do modelo econômico baseado no trabalho escravo, que precisava ser substituído pelo trabalho livre. Foi o poder popular e a pressão de movimentos como dos abolicionistas, sobretudo na década de 1880, que apoiava rebeliões, insurreições, suicídios e fugas dos escravizados.

É preciso lembrar os abolicionistas, que lutavam contra as repressões violentas dos conservadores. Dizer nomes como Luís Gama, ex-escravo que se tornou advogado lutando pela libertação dos negros e negras; André Rebouças, engenheiro, que tinha como proposta dar terras aos libertos; Adelina, ex-escrava, charuteira, que ajudava na fuga de escravos no Maranhão; Monteiro Lopes, diplomado e empossado o primeiro deputado federal negro da história brasileira; José do Patrocínio, filho de escrava, tornou-se jornalista e escritor, participando ativamente dos movimentos para libertação dos escravos; Francisco José do Nascimento, o Dragão do Mar, que comandou uma greve de jangadeiros em Fortaleza e se recusou a transportar escravos para os navios, negra livre, que publicava contos e artigos contra escravidão.

O que se segue é uma nova constituição republicana, de 1891, que traz a negação do direito de voto aos analfabetos e sem nenhum compromisso com a educação pública como um dever do estado. Marca do silêncio dos anos de escravidão e apagamento da memória e origem dos negros e negras que construíram o Brasil.

Republicanos, aliados aos fazendeiros e aos oligarcas e suas milícias armadas que agrediam e matavam abolicionistas, afirmavam não acreditar mais que tivesse ocorrido escravidão no Brasil, como descreve o Hino da Proclamação da República, “Nós nem cremos que escravos outrora tenha havido em tão nobre País”. 

Diante de um projeto autoritário, eugenista e racista se formaram as bases ideológicas e a tentativa de criação de uma identidade nacional onde havia a democracia racial.

Todavia isto não ficou apenas no passado. Nos 131 anos que seguiram atualizamos as formas de opressão e exploração. O tempo mostra um país profundamente desigual, com relações raciais muito assimétricas. A herança do processo de colonização do Brasil são negros e negras com menos acesso a educação, a saúde, ao transporte, mas que morrem em proporções maiores quando olhamos para juventude negra (de 15 e 29 anos) vitimas de 40% dos homicídios no país e outras determinações sociais concretas.

É possível nos delongarmos sobre os números que apontam para as desigualdades raciais no Brasil, mas nos interessa dizer de um projeto que possibilite ao povo negro restituir a condição de humanidade que fora negada e vilipendiada na construção histórica, cultural e também das relações sociais no Brasil.

É preciso dizer que a abolição foi feita por uma pressão das ruas, das senzalas e não por uma decisão política com base na bondade da monarquia branca. Somente uma proposta que seja fruto de negras e negros trabalhadores do nosso país é capaz de romper radicalmente com as consequências dos anos de escravização que seguem a nos aviltar. 

Joaquem Nabuco disse que “o nosso caráter, temperamento, a nossa moral acham-se terrivelmente afetados pelas influências com que a escravidão passou 300 anos a permear a sociedade brasileira (…) enquanto essa obra não estiver concluída, o abolicionismo terá sempre razão de ser”.

O racismo é um exercício orgânico do capitalismo, que reforça e consolida processos de dominação. Nossa luta deve caminhar para o rompimento radical de toda e qualquer forma expropriação e exploração capitalista da sociedade. É com a altivez da luta e coragem das negras e negros que lutaram para o fim da escravização no Brasil, que reafirmamos nosso compromisso com a liberdade do nosso povo: “Pois quem nasceu, pra ser guerreiro, Não aceita cativeiro, por isto que decidi […]” (Zumbi – Grupo Agreste).

Priscilla Santos – Psicanalista e Militante da UP-SP

REFERÊNCIAS

Cangoma – grande tambor, também chamado de angoma, tocado em cerimonias dos negros. O título faz referência ao ponto de jongo, imortalizado na voz de Clementina de Jesus “Cangoma me chamou”. 

GORENDER, Jacob. O escravismo colonial. São Paulo: Ática, 1980.

MOURA, Clóvis. Rebeliões da Senzala. São Paulo: Ciências Humanas, 1981.

SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças. Cientistas, instituições e questão racial no Brasil, 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

VIOTTI DA COSTA, Emília. Da senzala à colônia. São Paulo: Ciências Humanas, 1982.