ZEFERINA – LUTADORA PELA LIBERTAÇÃO DO POVO NEGRO E OPRIMIDO

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“E existe um povo que a bandeira empresta/ P’ra cobrir tanta infâmia e cobardia!/ Meu Deus! meu Deus! mas que bandeira é esta,/ Que imprudente na gávea tripudia?!…/ Silêncio!… Musa! chora, chora tanto/ Que o pavilhão se lave no teu pranto…” (Castro Alves em Navio Negreiro)

Não há dúvida de que a divisão de classes na Humanidade foi a base para o surgimento das demais formas de opressão – de gênero, raça, religião, etc. No caso da mulher, veio da necessidade de certeza da paternidade para definir a sucessão, isto é, a herança dos bens. As pesquisas mostram que o patriarcalismo (base do machismo) coincide com o desenvolvimento da propriedade privada e a consequente destruição da comunidade, fortalecendo a família restrita ou predominantemente sanguínea. No caso do negro, a opressão não se origina da cor, mas da escravização dos povos africanos, que decorre da inviabilidade da utilização forçada da mão de obra indígena nos países colonizados.

Imaginem, então, o sofrimento da mulher negra, vítima da exploração de classe, gênero e raça. Mas, como mostra a história, é daqueles/as que nada têm a perder, que nasce o projeto e a possibilidade de ruptura com a velha sociedade e construção da nova, que supera os antagonismos que entravam a harmonia, a felicidade humana.

Por essa razão, tantas mulheres assumem a linha de frente da luta por libertação em nossa história. Nesta edição, falaremos de uma delas, conhecida apenas por Zeferina. Pouca escrita existe da história das classes oprimidas no Brasil. Especialmente da época escravocrata (mais de três séculos), sabe-se mais pela tradição oral.

Esta nos diz que Zeferina chegou ainda criança de colo em Salvador (BA), trazida por sua mãe, Amália, que não veio para cá por vontade própria. Ao contrário. Sequestrada e vendida aos traficantes brancos, não tinha alternativa, senão embarcar no navio negreiro, cujo sofrimento não poderia ser melhor traduzido do que pela inspiração do poeta baiano Castro Alves, de obra imortal.

Preservando a cultura comunitária

Amália, Zeferina, não tinham sobrenome de família. Elas viviam num regime de comunidade, embora já marcado pela formação de clãs, mas ainda fundamentado na família maior e no matriarcado ou sistema matrilinear, como chamam atualmente os cientistas sociais. Os povos africanos, embora dispersos na terra estranha, buscavam manter suas tradições. Dentro do sistema colonial, por meio dos terreiros, e à parte deles, nos quilombos, quando conseguiam fugir mata a dentro.

Ainda jovem, Zeferina foge para um quilombo geograficamente próximo a Salvador, mas de acesso difícil, em plena Mata Atlântica, região litorânea, onde organiza o terreiro, passa a liderar a comunidade e viver conforme às tradições do seu povo banto. Outros quilombos se formaram na região, envolvendo negros e indígenas, especialmente bantos e nagôs, procedentes da Mãe África.

Um pouco sobre bantos e nagôs

Os bantos foram os primeiros povos a serem sequestrados na África, principalmente em Angola e no Congo, e escravizados no Brasil, já na década de 1560. Tratados como animais selvagens, proibidos de exercer seus cultos, foi muito difícil manter as tradições. De modo que, crescendo no Brasil, já no Século 18, educada por sua mãe Amália, Zeferina já pode ser considerada heroína apenas por lutar para preservar a cultura do seu povo.

Duzentos anos depois é que seriam escravizados os nagôs, principalmente da Nigéria. Foi menos difícil para eles preservar a cultura, pois, na época, apesar de o regime escravista continuar com a mesma intensidade, já eram permitidas algumas manifestações culturais, especialmente de caráter religioso.

Por lutas como a de Zeferina é que vários costumes bantos se incorporaram à cultura brasileira, a exemplo de alimentos como jiló, maxixe, melancia, azeite de dendê. Na música, o uso dos atabaques influenciou no samba, no axé. Zumbi era descendente de bantos.

Quanto aos nagôs, trouxeram a essência do candomblé com seus ritos e orixás; o costume de levar flores para Iemanjá; as roupas coloridas, os abadás, que são a marca do carnaval baiano.

Da autodefesa ao ataque

Com frequência, os quilombos eram assediados por capitães-do-mato, sempre derrotados pela resistência quilombola. Até que um dia, cansados, bantos e nagôs resolveram unir forças e tomar Salvador, instalando um grande quilombo que pusesse fim à escravidão, à exploração.

O levante estava marcado para o Natal – 25 de dezembro de 1826, dia em que os brancos ricos, senhores de escravos, estariam preocupados com suas fartas ceias e não com o nascimento de Jesus, o Crucificado. Tiveram, entretanto, que antecipar a rebelião para 17 de dezembro, por conta de um ataque-surpresa de um grupo de capitães-do-mato. Na verdade, a polícia já tinha informações sobre a preparação da revolta, embora não soubesse a data em que aconteceria.

Os rebeldes perderam a batalha, e suas lideranças, entre as quais Zeferina, foram mortas ou presas. Zeferina foi humilhada em praça pública, depois levada para o Forte do Mar e condenada a trabalhos forçados. Morreu na prisão, não se tendo registro da data do seu falecimento.

A imortalidade de uma lutadora

Não morrem, entretanto, os homens e as mulheres que se dedicam a um povo, a uma causa justa. É o que ocorre com Zeferina. Por iniciativa da Pastoral de Juventude do Meio Popular (PJMP), foi criada, em 1999, a Associação Quilombo Zeferina, cuja localização se dá onde era o Quilombo e hoje ficam o bairro de Pirajá e o Parque de São Bartolomeu – subúrbio de Salvador – última reserva florestal da Região Metropolitana. A Associação comemora em 17 de dezembro o Dia da Imortalidade do Poder de Zeferina. Na data, acontecem debates, atividades culturais e sociais ressaltando a bravura dos/as quilombolas e a atualidade dessa luta, que continua!

José Levino, historiador