Serley Leal
FORTALEZA – O jornal A Verdade entrevistou o médico patologista Tiago Magalhães Gurgel. Ele é chefe de equipe da Emergência no principal hospital privado de Fortaleza, Ceará. Foi diretor do Sindicato dos Médicos do Ceará e é membro da Unidade Popular.
Muitas pessoas questionam a gravidade da Covid-19. Qual a gravidade desta doença e quais os riscos para as pessoas?
A Covid-19 é causada por um grupo de vírus chamado coronavírus. Ele se divide em duas famílias: o alfa coronavírus e o beta coronavírus. A família da Covid-19 é tipo beta. Nesta família já são conhecidas outras doenças com notória gravidade. A primeira foi causada por um vírus chamado SARS, em 2002-2003, que acometeu países da Ásia e praticamente ficou naquele meio. Depois, teve outra doença chamada MERS, que se originou no Oriente Médio. E agora nós temos essa terceira, por um outro tipo de vírus, conhecido como SARS-Cov-2. O que chama a atenção para essa família beta coronavírus é a letalidade. O da MERS foi de 35%. O da SARS foi de 10%. Esse de agora tem uma mortalidade bem menor, porém tem se propagado com muita facilidade, levando a um número expressivo de mortes em todo o mundo em um curto período de tempo. Em países como Alemanha e Coreia do Sul, que testaram amplamente, esse índice tem sido bem menor. Já países como Brasil, Estados Unidos e vários países europeus que decidiram testar apenas os pacientes sintomáticos – em particular, os sintomáticos graves –, tem se verificado maior letalidade. No mundo, segundo a OMS, os dados até o dia 09/04 mostram cerca de 1,5 milhão de casos e mais de 80 mil mortes. Nessa epidemia, o que tem preocupado muito a comunidade médica é o fato de que as muitas pessoas que evoluem na forma grave precisarão de leitos de UTI por um considerável período. Tem sido necessário cerca de duas a quatro semanas para a completa recuperação de cada doente e ainda não existe tratamento específico com valor terapêutico comprovado. O que está disponível é o suporte de cuidados intensivos com ventilação mecânica para que a pessoa não morra pela falta de ar. Então, na medida em que mais pessoas sejam contaminadas, corremos o risco de não termos os leitos e a aparelhagem disponíveis para poder manter vivas essas pessoas. Não é que todo caso da doença seja grave, mas ela tem mostrado certa facilidade de transmissão. Nas formas graves, precisa-se de até um mês para recuperação. E é isso que tem causado o esgotamento em vários sistemas de saúde mundo afora. Nenhum sistema opera com grande quantidade de leitos de UTIs e com aparelhos ventiladores ociosos caso se venha a ter uma quantidade massiva de casos graves.
No Brasil os leitos de UTI estão distribuídos entre o SUS e os hospitais privados. Na Europa alguns hospitais foram estatizados. Não seria necessária uma integração total entre as redes pública e privada neste caso?
Com dados deste ano, nós estimamos que o Brasil tenha 55 mil leitos de UTI. Destes, metade está no SUS e metade, na rede privada. No entanto, o problema é que, sem a Covid-19, já existia a ocupação de quase 80% dos leitos. Outro problema para se levar em conta num país de dimensões continentais, com mais de 5.500 municípios, é que nós só temos leitos de UTI em 10% destes municípios. Ou seja, apenas 550 municípios estão equipados para atender casos graves da doença. Em relação à integração público e privado, pode ser utilizada de acordo com a curva de contágio e casos graves. O governo pode solicitar, sim, à rede privada leitos de UTI para tratamentos. Mas a estatística já mostra uma ocupação alta dos leitos em ambos. Não existem muitos leitos ociosos. O que os governos estão fazendo é a adaptação de estruturas de campanha para ampliar esses leitos. No entanto, teremos outro problema em virtude de ser uma pandemia mundial. Foi gerada uma guerra comercial para compra de material médico-hospitalar. Hoje, boa parte do parque industrial mundial está na China e está ocorrendo muita pressão, principalmente dos EUA, para atender prioritariamente os norte-americanos em detrimento do resto do mundo. Ou seja, apesar da criação de muitos leitos provisórios, como não chegamos ao pico de contágio, pode ocorrer de termos os leitos, mas não termos material médico-hospitalar suficiente. Este é outro grande gargalo. Estamos sentido na pele o atraso industrial do país. Não existe novidade em produzir um ventilador mecânico ou produzir máscaras. Como não conseguir rapidamente produzir aventais, gorros, luvas? Enfim, algo de fácil produção, sem nenhuma complexidade industrial. É preciso refletir sobre nossa dependência completa das importações.
O pico da doença ainda não está perto e os testes no Brasil ainda são insuficientes. Você acha que pode realmente haver colapso?
Eu queria antes de entrar diretamente na resposta, tecer alguns outros comentários importantes. A recomendação da OMS era de que a população fosse amplamente testada e os casos suspeitos fossem isolados e monitorados. Alguns países utilizaram ferramentas para garantir esse rigor sanitário. No Brasil isso não foi possível. A indústria médica não produz testes em quantidade, vem de fora, com poucos investimentos em pesquisa, como já relatado anteriormente. Como não tínhamos essa possibilidade, não monitoramos os casos. Padecemos também de uma atenção básica de saúde precária, que poderia ajudar na busca de identificar rapidamente os casos. Em Cuba, um país muito mais pobre, os profissionais estão identificando os casos nas casas. Aqui, os testes se limitaram a pessoas sintomáticas ou que tiveram contato com pessoas com a doença, num primeiro momento. Posteriormente, os testes se concentraram apenas nos casos graves, os grupos de risco e os profissionais de saúde. Nesse ponto, nós temos um descontrole, como ocorreu na Itália, na Espanha e também nos EUA. Mesmo sendo países do chamado “Primeiro Mundo”, não adotaram uma vigilância ativa e muita testagem. Quando foram tentar frear o contágio, ele já estava amplamente propagado. Estão em colapso porque não adotaram um rígido controle sanitário e epidemiológico. No Brasil, apesar do posicionamento do Governo Federal – particularmente do presidente da República, que busca copiar Donald Trump –, prefeitos e governadores, alertados duramente por seus assessores médicos e por medo, adotaram várias medidas, mas aquém da necessidade. Embora o isolamento social esteja sendo muito importante para diminuir a curva de contágio, ele não é suficiente. Era e, ainda é, preciso uma vigilância muito ativa. As publicações científicas são muito claras. Existe uma fase assintomática que impulsiona o contágio. Por outro lado, temos centenas de casos de doentes que, mesmo com sintomas leves, que procuraram unidades de saúde e retornaram para casa com receitas, mas não foram isolados. Quando é divulgado um dado de contágio hoje, às vezes essa coleta foi feita há quinze dias. Ou seja, nós vemos um filme atrasado porque a curva, mesmo fidedigna, não representa a quantidade real de casos.
Como você analisa as medidas tomadas pelos governos para enfrentamento dessa situação?
Somente em 31 de dezembro ocorreu o reconhecimento de uma nova doença, a partir de casos relatados na China. Em janeiro, identificaram o agente causador, mas só em 30 de janeiro a OMS disparou um alerta de emergência com repercussão internacional. Em 11 de março, foi confirmado como pandemia. Perceba que, neste ínterim, entre janeiro e março, as orientações eram no intuito de haver ampla testagem, isolamento social e monitoramento. Os EUA e a Coreia do Sul tiveram a identificação de casos muito próximos. O que diferenciou foram as medidas que cada governo tomou. Nos EUA houve a restrição do acesso de estrangeiros da Ásia. Não atenderam às recomendações da própria OMS. Na verdade, houve negligência. Utilizaram até o vírus para fortalecer sua campanha ideológica contra a China. Nenhuma decisão foi tomada, nem plano de contingência, testagem, nada. Aliás, até um plano de epidemia do Obama foi encerrado meses atrás. Agora acordaram, mas continuam com diversos ataques ideológicos. Veja a diferença: enquanto o governo dos EUA olha para o próprio umbigo, existem as brigadas médicas de solidariedade cubanas enviadas para vários países. O mundo precisa de cooperação, solidariedade. Por outro lado, com a experiência de outra epidemia, a Coreia do Sul iniciou um amplo plano já organizado anteriormente. A Itália não deu a devida atenção também. O prefeito de Milão até chegou a realizar uma campanha para a cidade não parar. O Reino Unido, onde o próprio primeiro ministro ficou doente pela doença, pensou numa estratégia epidemiológica chamada “imunidade de rebanho”. Que é isso? Normalmente utilizado como estratégia para pessoas já imunes à doença que não permite nova propagação. Ou seja, pressupôs que, se muitas pessoas se infectassem, haveria uma rápida imunidade. Mas rapidamente eles repensaram. No Brasil, foi a mesma coisa. Em fevereiro, o Governo Federal trouxe os brasileiros que estavam em Wuhan, mas o Carnaval ocorreu normalmente; a economia continuou normalmente, nem mesmo controle de acesso de estrangeiros foi decretado. Houve uma verdadeira minimização dessa situação. Somente após uma semana de crescimento rápido do contágio, o ministro da Saúde e os governadores começaram a agir. O presidente da República, que não entende absolutamente nada de sanitarismo, chamou a pandemia de “gripezinha” quando praticamente todos os assessores que viajaram com ele foram infectados. Bolsonaro ainda está alheio a essa realidade. Enfim, não houve qualquer responsabilidade séria desses governos na Europa, nos EUA e no Brasil. Não houve política sanitária de defender os seres humanos.
Como você analisa esse conflito entre economia e saúde?
Vivemos numa sociedade de classes. E, bem ou mal, os indivíduos vão se posicionar a favor de uma ou outra classe. Para aqueles que se posicionam a favor das classes dominantes, uma pandemia como essa vai gerar grandes prejuízos e eles querem argumentar uma justificativa para a continuidade da atividade econômica. Alegam que serão compatíveis as mortes com as perdas econômicas. Nós, que nos posicionamos a favor da classe trabalhadora, sabemos que, assim como ocorre numa guerra, são os proletários que vão se expor diretamente aos danos na linha de frente. Não é o patrão que vai se expor. Ele dá ordens no conforto da sua mansão. Eles, os patrões e seus defensores, alegam que milhões ficarão sem renda. Mas, na prática, esse discurso é mero embuste. Nos EUA, a classe trabalhadora tem sido desempregada e, como consequência, perdeu sua parca cobertura de saúde e as ditas medidas foram pensadas para salvar a “economia” e preservar as oligarquias financeiras. Caso estivessem realmente preocupados com o bem-estar da população, existem medidas para uma imediata distribuição de renda a quem precisa, como a suspensão do pagamento da dívida pública, a taxação das grandes fortunas, reforma agrária, corte dos privilégios, taxação dos lucros das grandes empresas e dos bancos, plano de manutenção da produção agrícola e distribuição dos gêneros de primeira necessidade.