Entrevista com o juiz Vitor Moreira Lima, do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro.
Denise Maia
RIO DE JANEIRO – O Estado surge na medida em que os antagonismos de classes não podem objetivamente ser conciliados. A justiça é um dos braços do Estado e, na sociedade capitalista, por mais que seu papel seja atuar para que a sociedade avance nas relações humanas, ela está atrelada aos interesses econômicos antagônicos entre a burguesia e a classe trabalhadora.
Nesse cenário, destacam-se alguns juristas que fogem dessa lógica e se esforçam na defesa dos direitos do povo pobre contra a classe dominante. São agentes do Direito sensíveis à situação precária de moradia, saúde, educação, saneamento e emprego da população que habita em favelas, vielas, quilombos e periferias.
Um deles é o juiz do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro Vitor Moreira Lima, de 44 anos, que recebeu o Jornal A Verdade para uma entrevista.
Titular da Vara Cível na Baixada Fluminense, no município de Magé, Vitor nos relatou os desafios de promover a justiça numa das cidades mais pobres do Estado. “Quando fui para essa Vara já sabia da demanda (são mais de 300 processos por mês!), mas encarei com tranquilidade. Foi minha opção trabalhar em Magé, porque fora a função de juiz, de magistrado, também sou pesquisador na área humana, no que diz respeito à saúde, focando na solidariedade, na universalidade dos serviços públicos. Atuando nessa vara, poderia monitorar e melhorar esses feitos. Identifiquei que havia muitas demandas relativas à saúde, principalmente os medicamentos e tratamentos que eram negados às pessoas”.
Com especialização em Direito Médico, o magistrado também é mestre em Direito e Saúde Pública pela Fiocruz. “Esse título tenho muito orgulho de ostentar, além do orgulho de ser pai das minhas filhas. Faço parte de um departamento no tribunal denominado Projetos Especiais do Tribunal, voltado a levar a justiça a quem não tem. Realizamos isso através da Justiça Itinerante e da Justiça Cidadã. Na prática, esses projetos buscam transformar cidadãos que moram em comunidades em agentes que resolvam situações emergenciais. São agentes pacificadores de justiça. Eles se organizam socialmente e tentam resolver os conflitos antes de chegar à justiça, uma espécie de solução pré-processual”, explicou.
Na pandemia, as pessoas envolvidas no projeto passaram a cumprir um papel determinante de auxílio às famílias de vítimas da Covid-19. “No início, várias pessoas morreram em casa por falta de assistência do Estado. Uma vez constatado o óbito, pela regra sanitária, o corpo não pode ser levado na ambulância pelo Samu. Então, esses agentes formados pelo projeto da justiça cidadã se ofereceram para cumprir o papel de ‘guardadores de corpos’: ajudando os parentes na atenção jurídica e afetiva, se responsabilizando pelos corpos”, detalhou o juiz.
Mas esses projetos elaborados e aplicados pela justiça na formação de agentes da paz são paliativos, uma vez que a Emenda Constitucional 95 coíbe o reajuste nas áreas da saúde, educação e saneamento durante 20 anos, e atinge, principalmente, os moradores das comunidades carentes. Perguntado sobre como um agente pacificador poderá agir diante da falta desses investimentos, o juiz respondeu: “O posicionamento da magistratura no que tange a essas políticas sociais foi utilizar um critério do Direito Administrativo chamado ‘Estado de Necessidade do Cidadão’, uma brecha que encontramos para garantir os direitos dos cidadãos às suas necessidades básicas, como água, saúde e outros”.
O juiz Vitor afirmou que “na pandemia, todos perceberam a importância do SUS. Devemos acabar com os limites para os gastos com a saúde, aparelhar os hospitais e criar melhores condições de atendimento à população, valorizando os profissionais da saúde”.
Em relação à decisão da Agência Nacional de Saúde (ANS), que derrubou na justiça a liminar que obrigava os planos de saúde a oferecerem testes sorológicos para o novo coronavírus aos conveniados, Vitor expressou sua indignação: “Essa decisão realmente foi um absurdo. O poderio econômico das grandes corporações sufoca a autonomia dos profissionais no campo da saúde. Prefiro não pensar que seja um plano preconcebido”.
No final da entrevista, o juiz Vitor Moreira Lima externou sua satisfação em falar com o Jornal A Verdade e disse que “nosso país não pode retroceder; a liberdade das opiniões deve continuar, independente de um magistrado não poder ter uma filiação político-partidária. Isso não o impede de falar com os meios de comunicação. Ainda tenho esperança de que a gente saia dessa pandemia mais fortalecidos, para que não se cometam os erros de um passado recente”.