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sexta-feira, 22 de novembro de 2024

O Grande Inquisidor, de Dostoiévski, nos interpela

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CONTRA OS DOGMAS. O ator Celso Frateschi em cena de “O Grande Inquisidor” (Foto: Divulgação)

No neopentecostalismo brasileiro, os falsos líderes religiosos, sejam padres ou pastores, incitam o povo a ficar entocado nos espaços religiosos, tiram as pessoas dos espaços públicos e, assim, aprisionam as pessoas domesticando-as com moralismos que são Grande Inquisidor. Esse neopentecostalismo foi exportado dos Estados Unidos para o Brasil e América Latina, como analisa o mineiro Délcio Monteiro de Lima, no livro “Os demônios descem do norte”, e fomentado pelos papas João Paulo II e Bento XVI.

Por Gilvander Moreira, Frei carmelita, Doutor em Educação
Belo Horizonte (MG)

CULTURA – A convite do ator Celso Frateschi assisti e comentei a peça teatral “O Grande Inquisidor”, de Fiódor Dostoiévski, que é de leitura indispensável. O Grande Inquisidor é um pequeno, mas denso, eloquente e contundente capítulo do último romance de Fiódor Dostoiévski, “Os Irmãos Karamazov”, publicado como uma série no Mensageiro Russo, de janeiro de 1879 a novembro de 1880. Assistir à belíssima apresentação de O Grande Inquisidor com Celso Frateschi foi para mim um momento inesquecível e fez passar um filme na minha cabeça. Recordou-me as muitas vezes em que, como a maioria do povo brasileiro, eu também senti na pele estar sob certo tipo de inquisição por algum Grande Inquisidor.

A peça me fez recordar quando eu trabalhava em latifúndios como família agregada. Ao ver nossa produção, fruto da mãe terra e do nosso trabalho, sendo levada no caminhão do fazendeiro, dois gritos irrompiam no meu coração: “Isso não é justo!” e “Deus não quer isso!”. Esses gritos retinam nos meus ouvidos para sempre. Marcado por essa experiência de ser explorado pelo latifúndio e por latifundiários, tenho dedicado minha vida a lutar por justiça no seu sentido mais profundo: justiça agrária, justiça urbana, justiça ambiental e respeito aos direitos humanos fundamentais. A violência perpetrada pelo Grande Inquisidor, seja ele cardeal, latifundiário ou outro carrasco, gera indignação nas pessoas violentadas.

Andar na contramão do Grande Inquisidor exige muito amor, paixão pela causa dos violentados e coragem. Segundo Dostoiévski, em O Grande Inquisidor, em Sevilla do século XVI, na Espanha, em tempos de chumbo e auge da mais terrível inquisição, Jesus Cristo reaparece esbanjando ternura, amor, afabilidade, com uma luz irradiante de amor que humanizava o ambiente. Porém, Jesus é submetido a um cruel processo inquisitorial por um cardeal. Eis uma metáfora da nossa realidade de mundo sob cruel super exploração, em 2020, e especialmente do Brasil, país imerso novamente em violência generalizada, tortura, com relações sociais escravocratas e ditadura, de mil formas.

Muitas afirmações e perguntas de O Grande Inquisidor são emblemáticas e nos interpelam, tais como: “Por que vieste para nos estorvar?”, “Como pode um rebelde ser feliz?”, “Que liberdade é essa se a obediência é comprada com pão?”, “Os homens anseiam por comunidades de culto”, “Tu vieste só para os eleitos?”, “Quem retém o pão em suas mãos?”, “Mesmo que haja outra vida, não será para escravos obedientes”, “Não digas nada”, “Cala-te!”, “Te julgarei e te condenarei como o maior dos hereges”, “Não existe nada mais insuportável para a humanidade que a liberdade”, “Nada é mais irresistível que a atração do pão”, “Existem três poderes, três forças na terra: o milagre, o mistério e a autoridade”, “O homem busca muito mais o milagre do que Deus”, “Tu mereces ser queimado na fogueira da inquisição”, “Os grãos de areia são fracos, mas se amam”, “Amanhã eu te queimarei”, “Vá e não voltes nunca mais!”, e tantas outras afirmações e perguntas que cortam como navalha.

Realmente, há no meio do povo ânsia imensa por “comunidades religiosas de culto”. O fundamentalismo religioso do neopentecostalismo está sendo trombeteado aos quatro ventos por igrejas eletrônicas que reduzem Deus a um quebra-galho, autoajuda e fomentando uma falsa teologia, que é a chamada Teologia da Prosperidade, afundando as pessoas em água benta, em desencarnação da fé cristã e em amputação da dimensão social do Evangelho de Jesus Cristo. Orar faz bem, mas não qualquer tipo de oração, pois há determinados tipos de oração que transferem para Deus responsabilidades que são nossas.

Faz necessário recordar que o bom pastor do capítulo dez do Evangelho de João, na Bíblia, convida as ovelhas para saírem do curral e as conduz para verdes pastagens, para campo aberto – espaço de liberdade, não abstrata, mas com condições objetivas que viabilizem o ser livre efetivamente. Lamentavelmente, no neopentecostalismo brasileiro, os falsos líderes religiosos, sejam padres ou pastores, incitam o povo a ficar entocado nos espaços religiosos, tiram as pessoas dos espaços públicos e, assim, aprisionam as pessoas domesticando-as com moralismos que são Grande Inquisidor, chegando a aberrações tais como furtar do povo doações para construir templos luxuosos e até sino de 17 milhões de reais. Absurdo! Idolatria! Não esqueçamos: o neopentecostalismo foi exportado dos Estados Unidos para o Brasil e América Latina, como analisa o mineiro Délcio Monteiro de Lima, no livro “Os demônios descem do norte”, e fomentado pelos papas João Paulo II e Bento XVI.

Há vários sentidos para Religião: no sentido original, Religião vem de re-ligar, re-ler, re-eleger e, assim, pode nos religar com o mistério de amor infinito e profundo que nos envolve com o próximo, com todos os seres vivos e com o nosso Eu mais profundo. Entretanto, com o andar histórico, as Religiões se tornaram instituições com dogmas, doutrina, funcionários e tendem a se autorreproduzirem em estruturas de poder opressor.

Parece-me que Dostoiévski critica de forma contundente não o ensinamento e a práxis de Jesus de Nazaré, vista da perspectiva da Teologia da Libertação, mas critica a versão do ensinamento e da práxis de Jesus, segundo a teologia dogmática clássica, que sob muitos aspectos deturpa o que o Galileu revolucionário ensinou e testemunhou. Dostoiévski denuncia de forma implacável a Igreja Instituição e a diabólica inquisição que excomungou Jesus de Nazaré revolucionário, porque ele estorvava e estorva os podres e violentos poderes. Para se deleitar em podres poderes e comodismo, muitos não mudam de vida como propõe Jesus, mas mudam Jesus adocicando-o ou enquadrando-o a escusos interesses. Se Jesus voltasse agora, ele não teria lugar na estrutura do próprio Cristianismo, como tanta gente marginalizada e violentada na sua dignidade.

Por exemplo, as três palavras com as quais, segundo O Grande Inquisidor, se domina todos: “milagre, mistério e autoridade”. Para a Teologia da Libertação, milagre não é mágica, não é algo feito por Jesus que seja impossível de ser feito por outra pessoa humana. Milagre não estupra a natureza. “A graça supõe a natureza”, já dizia o filósofo e teólogo Tomás de Aquino. Jesus não tinha um superpoder sobrenatural inacessível aos outros humanos. Jesus não nasceu Cristo, mas se tornou Cristo, porque se humanizou de forma esplêndida. Milagre é um processo de solidariedade gratuita que questiona dogmas, leis e regras que geram marginalização e, por isso, liberta as pessoas, mas sempre nas entranhas das relações humanas e sociais. Um aparente bom pastor, mas na realidade inquisidor, opressor, dominador, muitas vezes invoca o mistério para impor um “cale-se!”, porém diante do mistério, conforme dizia o filósofo Wittgenstein, “devemos nos calar somente após dizermos a última palavra”. Assim como Jesus revolucionário estorva os Grandes Inquisidores da história, sigamos estorvando os inquisidores da atualidade.

(Na próxima semana publicaremos a 2ª parte deste texto)

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