“Já estamos em colapso, é desesperador”: a angústia das trabalhadoras da saúde

40
ANGÚSTIA – Trabalhadores da saúde estão exaustos e sabem que a crise está longe do fim (Foto: Reprodução)

Roseli Simões e João Coelho

SÃO PAULO – O Grande ABC, situado na região metropolitana de São Paulo, uma das regiões mais ricas e industrializadas do país, tem tido índices piores que a média do estado e do país no combate à Covid-19. Prestes a ultrapassar as 6 mil mortes desde o início da pandemia, a região tem média de lotação de leitos acima dos 90% e uma mortalidade de 3,6% (enquanto a mortalidade estadual é de 3% e a nacional 2,5%); contando com 6% da população (2,8 milhões de moradores) a região registra 7,5% das mortes em São Paulo, ou seja, 1 em cada 13 falecimentos no estado aconteceu no Grande ABC.

O Jornal A Verdade entrevistou duas trabalhadoras da área da saúde, Maria e Júlia*, técnicas de enfermagem na cidade de São Bernardo do Campo, para conhecer melhor a realidade enfrentada dentro dos hospitais.

Maria, que tem 46 anos, trabalha há 10 na área e há 7 na cidade, atuando em uma Unidade de Pronto Atendimento (UPA) com jornada de 12 horas. Sobre o trabalho e as principais dificuldades enfrentadas nesse momento, Maria desabafa: “A jornada está muito cansativa, pois desde que começou a pandemia a sobrecarga de trabalho é muito grande. Primeiro porque a demanda tem aumentado muito, cada dia mais, segundo porque muitos colegas estão afastados, seja porque são do grupo de risco, seja porque se contaminaram com a Covid. E mesmo com esses afastamentos não houve a contratação de novos funcionários, então quem ficou está carregando um peso muito grande”. E continua: “Fora o cansaço físico, tem a questão psicológica… todos temos muito medo de nos contaminar e levar a doença para dentro de casa, para nossa família. Muitas vezes nós nos vemos atendendo pessoas conhecidas, colegas, amigos, familiares, isso é muito difícil e o cansaço mental é cada dia maior”.

Julia, que tem 24 anos e trabalha há 5 na área, atua no HU – Hospital de Urgência de São Bernardo do Campo, no setor de UTI intensiva e em mais um hospital particular, também no setor de UTI, ambos com jornadas de 12 horas. Sobre a exaustão, afirma: “a gente sente como se as jornadas estivessem mais longas por causa do cansaço, a lotação causada pela pandemia dificulta muito o atendimento e os profissionais da saúde estão exaustos, a demanda é muito grande. Eu mesma estou exausta, mas sei que ainda temos uma longa jornada combatendo o vírus da Covid”.

Perguntada sobre o atual momento, o pior desde o início da pandemia, Maria descarrega: “nenhum momento anterior foi fácil, mas esse é o pior. Recebemos pacientes que chegam à unidade conscientes e são internados, pedimos uma vaga para realizar a transferência para um hospital em condições de garantir os cuidados, mas isso demora de 5 a 10 horas para acontecer. O resultado é que o paciente piora, a dificuldade de respirar aumenta e ele acaba precisando de oxigênio… muitas vezes vem à óbito. É muito angustiante, estamos lidando com 2 ou 3 mortes todos os dias em uma unidade pequena como a que trabalho, é muito difícil”. De fato, a região já soma 68 mortes de pacientes na fila, à espera de um leito de UTI.

Já Júlia deixa claro o esforço dos trabalhadores da saúde em meio à crise: “Com todas as dificuldades, estamos dando nosso melhor para o bem estar dos pacientes; muitas vezes perdemos vidas para o vírus, infelizmente não somos Deus, mas nunca deixamos de realizar todos os procedimentos para confortar a angústia de nossos pacientes, que sofrem devido a necessidade de oxigenação pulmonar. Eu mesma estou em contato com a Covid desde seu início, quando ainda nem se sabia ao certo as formas de proteção e de evitar o contágio, mas em nenhum momento tive vontade de desistir. Tive sim vontade de me afastar por um tempo, para cuidar do meu próprio bem estar físico e mental, mas sabemos a importância de estar ali, pois se não formos nós para cuidar dos pacientes que estão totalmente dependentes de nosso auxílio, não haverá ninguém para realizar esse trabalho”.

Maria continua, mostrando as dificuldades que os trabalhadores enfrentam: “Quando os casos começaram a crescer eu combinei com minhas irmãs para que elas cuidassem da minha filha, eu tinha medo de levar o vírus para dentro de casa. Em maio do ano passado eu me contaminei e já faziam 30 dias que eu não a via pessoalmente, então foram 15 dias de isolamento total, sozinha, dentro de casa, com febre, dores insuportáveis de cabeça, nas costas e no resto do corpo. No total foram 45 dias sem poder ver minha menina. Graças a deus não precisei ser intubada, mas é uma dor muito grande tudo que está acontecendo”.

Mesmo com todo o peso de estarem na linha de frente na maior crise sanitária vivida pelo Brasil, os trabalhadores da saúde não recebem a valorização que merecem: “A gente recebe um avental descartável e uma máscara N95 a cada 15 dias. Isso significa que trabalhamos 15 dias, 12 horas por dia, com a mesma máscara. É um absurdo, numa situação dessas o EPI não pode faltar.” Julia complementa: “Estão faltando alguns medicamentos, principalmente sedativos. Não acho que seja por mal cálculo, mas não estávamos preparados para o grande crescimento da demanda nos últimos dias. O fato é que já estamos em colapso, não precisa esperar acabar tudo para assumir isso”.

Sobre a saída dessa situação e a necessidade da vacina, Maria é certeira: “Eu não entendo muito de política, infelizmente, até acho que isso é uma obrigação de todos por ser algo importante, mas o que eu vejo dentro do sistema de saúde é que o Governo demorou demais para ir atrás da vacina. Eles não compraram, não aceitaram as propostas e negligenciaram essa que é uma necessidade imediata da população. Agora o sistema já entrou em colapso e a gente não tem vacina, não tem pra onde correr, é desesperador”. Julia também confirma: “A vacina é fundamental para amenizar a demanda por leitos de UTI, os jovens estão se contaminando cada dia mais e ocupando os leitos, até mesmo crianças estão testando positivo e precisando de internação, então a vacinação de todos é uma urgência, para desafogar os hospitais”.

Para concluir, as duas trabalhadoras apelam para a consciência da população: “As pessoas precisam acreditar na doença. Para aqueles que ainda dizem que não existe ou que não é tão grave, eu convidaria a passar 4 horas ao meu lado em um plantão para ver o que é a Covid. 90% das pessoas que estão nas salas de espera dos hospitais e UPA’s estão contaminadas, os centros de saúde não são mais seguros. É uma tristeza, precisamos nos cuidar e cobrar a vacinação”.

 

*Maria e Julia são nomes fictícios, pois as trabalhadoras são orientadas a não tornar pública a situação enfrentada dentro dos hospitais.