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domingo, 22 de dezembro de 2024

Entrevista com Selma Maria de Almeida: “A revolução vai nos libertar desse sistema de morte que é o capitalismo”

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A Verdade inicia nessa edição (nº 265) uma série de entrevistas com militantes do Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas (MLB) que lutam em todo o país pelo direito de milhões de famílias a uma moradia digna. Nossa primeira entrevistada é a companheira Selma Maria de Almeida, 48 anos, coordenadora do MLB em São Paulo. Na conversa, ela nos conta como conheceu o movimento, por que decidiu se organizar e qual a importância do trabalho revolucionário de base nas periferias e favelas.

Queops Damasceno | São Paulo (SP)


A Verdade – Como era sua vida antes de conhecer o MLB?

Selma – Eu nasci em Barbacena (MG) numa família de dez irmãos. Minha mãe era dona de casa e costurava pra fora, enquanto meu pai trabalhava como ajudante numa loja de construção, onde ganhava apenas meio salário. Crescemos com muitas privações. Tínhamos somente quatro camas em casa e dormíamos todos amontoados. Nossa alimentação era feita na escola. Carne só no domingo. As roupas que usávamos eram doações. 

Sem conhecimento político, nos dedicamos à religião. Aprendemos que tudo é vontade de Deus e que devíamos ter esperança de que ele resolvesse mudar nossa realidade. Participei da Pastoral da Criança, onde acompanhamos jovens em situação de vulnerabilidade. Muitas crianças sofriam violência, eram abusadas e passavam fome, inclusive casos de morte por desnutrição. Mas, conforme fomos educadas, acreditávamos que esse era um desejo divino.

Passado um tempo, fui para Belo Horizonte trabalhar como babá. Por “morar” e dormir na casa dos patrões, trabalhava integralmente. Hoje percebo que essas relações de trabalho são herança direta do racismo e da escravidão. Voltei a estudar, fiz vários cursos de informática, telefonista e afins com o objetivo de mudar de profissão. Cursei Administração na Faculdade Paulista (UNIP) e sou na carteira Analista de Suporte Operacional.

Em Belo Horizonte, os problemas sociais eram mais visíveis. Vi muitos moradores de rua em situações desumanas, crianças fazendo arrastões, usando drogas e roubando. Mesmo com a ideia de que tudo era vontade de Deus, eu me sentia na obrigação de fazer alguma coisa e achava que a responsabilidade era de todos. 

Um dia, na igreja, ouvi uma pregação que falava de um rei que era tão ruim que quando morreu ninguém sentiu falta dele. Foi aí que tomei a decisão de lutar para mudar o mundo através dos ensinamentos de Cristo.

Dediquei-me totalmente a esta causa. Saía todas as noites chamando as pessoas para conhecerem essa nova forma de vida. Mas minha decepção veio quando comecei a observar que uma regra não era seguida: a que dizia que “todos que tinham muito, deviam dividir com os que não tinham, para que não houvessem necessitados”.

Na igreja havia muitos necessitados, gente que passava fome, morava em situação precária, não tinha o que comer. Mesmo assim, eram obrigados a dar o dízimo, inclusive sendo constrangidos em público quando não pagavam. Perdi a fé, abandonei o caminho e comecei a me dedicar a mim mesmo.

Em que momento você decidiu se organizar como militante? Como foi sua jornada até se tornar coordenadora estadual do MLB?

Já morando em São Paulo, trabalhei numa empresa terceirizada que prestava serviços para bancos. Comecei como operadora de telemarketing, até ir para a área de recursos humanos e gestão de pessoas. Tinha um bom salário, pagava um aluguel de mil reais na Zona Leste e não tinha nenhum tipo de preocupação de ordem financeira. Acreditava que quem trabalhasse bastante poderia conseguir casa, carro e outros bens materiais. 

Por ter crescido na igreja, acreditava que, na política, a direita representava os nossos interesses. Defendia ideias do tipo: “ninguém tinha o direito de invadir o que é dos outros”, “os ricos precisavam continuar ricos para dar emprego ao povo” ou  “para acabar com a violência era só matar o bandido”. Até que um dia eu fui demitida, não recebi meus direitos e fui orientada pela empresa a entrar na justiça porque eles não tinham condições de me pagar naquele momento.

Comecei a procurar um aluguel mais barato, e foi assim que vim parar em Mauá. A princípio me programei para ficar uns meses e depois voltar para a capital. Até que veio a pandemia… Eu não acreditava que fosse tão grave e achava que era uma invenção da esquerda para minar o governo de Bolsonaro. 

Nessa época, já morava com um de meus irmãos e ele também ficou desempregado. As contas começaram a se acumular, o aluguel ficou atrasado e começamos a passar fome. Procurei ajuda em algumas igrejas, mas não consegui porque não ser membro. Comecei a fazer alguns questionamentos: porque as coisas acontecem desta forma? 

Perambulava por Mauá tentando pensar em alguma coisa. Foi aí que vi uma fila enorme de pessoas esperando a entrega de marmitex por algum caridoso da cidade. Foi lá que conheci a Cláudia, ativista de um movimento social de esquerda. Ela me levou à sua casa, me deu uma sacola enorme com vários alimentos e me convidou para fazer arrecadações com o movimento que ela fazia parte. Aceitei porque achei que seria justo ajudar.

Isso foi em março de 2020, quando conheci o Felipe e a Gabriela, do MLB. Fizemos várias brigadas de solidariedade juntos, sem nos conhecermos de fato. Passei a admirar muito aquele trabalho. Vi muita coerência entre o que falavam e praticavam. Faziam o trabalho sem julgamentos, tratavam todos como de um mesmo lado, o lado dos oprimidos, e, principalmente, dividiam tudo que recebiam com quem não tinha quase nada.

Eu ainda me considerava de direita e defendia o Bolsonaro. Foi quando me convidaram para ocupar uma escola abandonada no centro de Mauá. Não vi outra saída para minha situação. Ocupamos a escola com dezenas de famílias que estavam na mesma condição. Afinal, o que é melhor: ocupar um imóvel de um milionário que está abandonando há mais de 20 anos ou morrer nas ruas, de fome ou da polícia? 

A essa altura não havia mais como continuar defendo o capitalismo. Pelos princípios bíblicos que eu creio por ser religiosa, acredito que o desejo de Deus para a humanidade é que não haja fome, nem miséria, nem exploração do homem pelo homem e que sejam todos iguais. “Ama teu próximo como a ti mesmo”. É inegável que Deus é comunista.

Quais são os desafios que você enxerga para os próximos anos? Deixe também, por favor, uma mensagem para os nossos leitores.

Hoje coordeno o Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas no estado de São Paulo. Temos duas ocupações de moradia em Mauá, mas nossa luta vai além da casa. Lutamos pelo direito à cidade, pela reforma urbana e pelo socialismo

Sou comunista, luto pela revolução que vai nos libertar desse sistema de morte que é o capitalismo. Quero influenciar o máximo de pessoas possível que sofrem com o sistema a querer também acabar com ele. Tudo começa através de pequenas lutas, como foi por exemplo a luta pelo Natal Sem Fome do MLB. A conquista das cestas prova que quando nos organizamos e lutamos, conquistamos tudo.

O desafio que temos é derrubar essa ideologia burguesa que domina a sociedade. Temos um governador fascista em São Paulo, que quer privatizar as empresas públicas, despejar os moradores de ocupação e defender os ricos acima de tudo. Mas nós não vamos desistir nem nos acovardar. O poder é do povo!

A mensagem que deixo para os companheiros é que não desistam da luta. Tem muita gente esperando para nos conhecer e essas pessoas podem ser despertadas desta ideologia burguesa. As palavras convencem por um tempo, mas o exemplo arrasta permanentemente.

Matéria publicada na edição nº 265 do Jornal A Verdade

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