Entrevista com trabalhadores de Natal revela condições precárias de trabalho e onda de violência 

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Leia a entrevista do jornal A Verdade realizada com trabalhadores de Natal, no Rio Grande do Norte. Trabalhadores de empresas privadas que não pararam, mesmo diante da crise de segurança pública que atinge o estado, desde a última terça-feira (14/03) deram depoimentos relatando as precárias condições de trabalho que enfrentam.

Michael Castro Leão*


ENTREVISTA —  Foram realizadas quatro perguntas aos trabalhadores, acerca das condições de trabalho que estão enfrentando diante dos atentados. Os nomes foram alterados para evitar constrangimento dos trabalhadores. 

A Verdade Como você tem feito para chegar até o trabalho?

Emmanuel — “A sensação é de um leão de manhã, outro à tarde. Preciso acordar mais cedo e entrar numa fila de ubers que são solicitados por fila de demanda. Acordando mais cedo, a chance de chegar na hora é boa.”

Cozinheiro de fábrica — “[…] No primeiro dia (terça-feira) tive que ir de Uber, sem a promessa de reembolso e sem saber como iria voltar para casa. Trabalhamos até 2 da manhã e voltei para casa de carona […] No dia 4 (quinta-feira) a gente não foi, […] mas avisados que iríamos dever hora. […] Dia 06 (sábado) tivemos o aviso que a fábrica iria funcionar e que a gente desse um jeito de chegar, […] Tive que chegar às 16 horas para pagar as horas que estava devendo do dia que não fui. 

João — “[…] Não tive assistência no início dos ataques, só estão falando sobre isso depois de 4 dias de atentados.”

Mateus — “Trabalho em uma central de telemarketing, para eu conseguir chegar ao trabalho a empresa tem chamado ubers, […] a administração da minha célula garante nosso carro para estarmos pontualmente ou o mais perto disso no horário de trabalho, mas na saída é sempre mais difícil confirmar os carros, […] por que a empresa, numa situação como esta, não se preocupa em garantir nossa volta com a mesma antecedência que garantem nossa chegada? Uma vez que estamos no trabalho e já cumprimos com as horas trabalhadas, o problema de nossa locomoção do trabalho até nossa casa já não é mais tão importante para eles.

Em outros produtos da central a situação é ainda pior, pois nem mesmo ubers eles têm garantido para os trabalhadores, a central dispôs de dois ônibus circulares que deixam os trabalhadores em um ponto específico de ônibus na rodovia e de lá, os trabalhadores que se virem para conseguir chegar em casa, é um desrespeito e desconsideração gigante, colocar os trabalhadores em risco assim e ainda precarizar seu direito ao descanso!”

Como o trabalhador se sente nessa situação tendo que trabalhar com caos na cidade, insegurança e risco de vida; o quanto a vida dele vale?

João — “O trabalhador é sempre quem se prejudica, pois sem os ônibus rodando, muitos estão tendo que pedir Uber por conta própria, […] com medo de sofrerem descontos pelos dias faltados, e também por medo de demissão. Parece que o trabalhador é só um número, o quanto ele trabalha e o quanto ele dá de despesa, e nada mais, sua vida não vale nada.”

Emmanuel — “É uma situação de apreensão, sabemos que o caos é direcionado a certos alvos, mas nada garante que não sejamos danos colaterais, a sensação de insegurança é constante e a presença policial ostensiva não remedia, na minha opinião, amplia a insegurança porque sei que a polícia age antes com força, depois como deveria agir. Responder com força nesse momento é ampliar uma guerra que gostaria que cessasse.”

Mateus — “Todo dia que saímos para trabalhar é uma insegurança, não bastasse a crise de transporte crônica que vivemos morando em Natal, em situações como essa, todo cansaço e fadiga ganha proporções muito maiores com todo o desespero e pânico gerado pelas ações dos criminosos. Para aqueles que moram em periferia e têm que atravessar a cidade, o medo e preocupação não para nem quando finalmente estamos em casa, se não corrermos o risco no trajeto, corremos o risco de termos as nossas casas invadidas ou sermos baleados por trocas de tiro,[…].”

Cozinheiro de fábrica — “Eu acredito que como trabalhador, o medo de uma situação de caos e insegurança na cidade pode ser ainda maior quando penso na segurança da minha família. É natural que eu me sinta estressado e preocupado com a possibilidade de algo acontecer com eles enquanto estou trabalhando. Para a empresa a vida dele não vale nada.”

Que perspectiva tem do trabalho e da sociedade (qual o sentido do trabalho assim nessas condições)?

Cozinheiro de fábrica — “Essa é mais fácil de responder, o sentido é apenas aumentar o capital da empresa, porque nossa vida para eles não vale nada. Já para nós o sentido é apenas para não perder o emprego ou ser descontado pela falta.”

Emmanuel — “[…]. Entretanto, a quem interessa a manutenção do trabalho nessa situação, ações efetivas para contornar o problema deveriam ser adotadas, não paliativas, como transportar pequena parte empregados em carros de aplicativo, quando na prática boa parte continua desassistida e tendo que fazer das tripas coração para chegar ao trabalho. Que não sofreu alteração de horários.”

João — “Perspectiva é só continuar trabalhando para pagar as contas, não há nenhuma motivação fora isso. Em dias normais o trabalho já é ruim, mas agora com esse caos além da desmotivação vem o medo de sair e não voltar para casa, pois a empresa só está liberando Uber para quem tem mais de uma pessoa pra ir, […].”

Qual sua opinião sobre o que tem acontecido no sistema carcerário e a violência policial em Natal que levaram a essa situação crítica de fogo cruzado?

João — “Eu penso que  a violência que estamos vivendo aqui fora é reflexo da violência que os presos sofrem lá dentro, não é questão de ser bonzinho ou ter pena de bandido, […]. Mas ser torturado, comer comida estragada, tomar água da privada, usar pessoas com tuberculose para transmitir para as outras como forma de punição não dá. Isso é desumano, e isso não existe na lei e tem de acabar, quanto mais violência lá dentro, mais violência aqui fora, […].

Emmanuel — […] A situação prisional no Brasil, de modo geral, trata detentos como não humanos e os mantém em situação de castigo, algo que não é previsto em nenhuma lei que garante a reclusão de pessoas apenadas. Em algum momento a bomba explode. Alimentos estragados, agressões físicas, humilhações, falta de ações socioeducativas, […] são ingredientes para o caos implementado […], mas nunca vi o ódio trazer um resultado diferente de mais ódio.

Cozinheiro de fábrica — O que tem acontecido nos presídios do RN e do Brasil são absurdos, são verdadeiros campos de concentração e a culpa de todo esse ocorrido é da falta de amparo e respeito pela vida humana por parte do Estado. […]

Mateus — É preciso repensar nosso sistema penal e carcerário, o judiciário em nosso país é uma verdadeira máquina de moer carne, e essa carne é preta e pobre, por isso não se importam em mandar os nossos para os presídios sem pensar duas vezes, enquanto os ricos que cometem crimes muito piores podem cumprir penas mais leves, em regime semi-aberto ou domiciliar, ou simplesmente aceitar uma fiança e resolver o problema, vale ressaltar aqui o caso de Flávia Carvalho, agredida e insultada por termos racistas por duas médicas racistas na porta de seu apartamento e até agora não foram condenadas. Depois que vão para os presídios, os apenados precisam passar o inferno na terra, é o que prega o sistema carcerário racista que temos […] eu entendo essa crise como um grito de reivindicação por melhores condições dentro dos presídios para os apenados, essas reivindicações precisam incorporar também na sociedade civil, questionando o modelo de sociedade e de Segurança Pública que temos, que se limita a responder o crime, de grosso modo, com mais prisões para os pobres, sem se preocupar com a desigualdade social que gera e reflete a violência criminal, ou repensar nosso sistema prisional que priorize o estímulo à ressocialização ao invés do punitivismo e violência.”

A situação dos trabalhadores de Natal expressa aquilo que apontou Engels sobre o proletariado, que possui sua existência assegurada enquanto classe, mas não enquanto indivíduo, sua vida não importa já que pode ser substituído. Vale ressaltar que a situação dos trabalhadores de Natal se agrava na perspectiva das mulheres, negros, pessoas trans e pessoas com deficiência. Que vêem a insegurança que enfrentam dia a dia aumentar se agravando pela ausência de responsabilidade das empresas que trabalham.

Dentro da crise de segurança pública que acontece no RN, apontada pela grande mídia e jornalismo policial como um problema de vagabundagem (compare ao século XIX) e ausência de mão de ferro do estado, se escondem problemas estruturais do capitalismo como a marginalização do povo pobre, encarceramento em massa dessa população e violência institucionalizada.

Ora, existe dentro desse sistema espaço para que os desafortunados (de fortuna e de sorte) tenham uma vida digna? Não é difícil traçar a ligação entre a falta de possibilidades e a opção do crime organizado.

Para assumir real responsabilidade o Estado deve a longo prazo garantir a ressocialização dos detentos, a ampliação dos empregos, a reforma urbana, a garantia da educação de qualidade e a desmilitarização da polícia.

*Michael Castro Leão é membro do Diretório Estadual Unidade Popular RN