Ana Bermúdez: “Direita reacionária da Colômbia não aceita perder privilégios”

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Durante a pandemia, o povo colombiano ir às ruas com a consigna “Se o povo vai às ruas protestar contra o governo em plena pandemia, é porque o governo é mais perigoso e letal do que o próprio vírus”. Isso serviu de inspiração para as jornadas que se desenvolveram nas ruas pelo “Fora Bolsonaro” no Brasil.

Para entender um pouco os ensinamentos dessas lutas e a conjuntura atual, com o novo governo, A Verdade entrevistou Ana Cristina Bermúdez, dirigente sindical e coordenadora nacional da Organização de Mulheres dos Povos da Colômbia (OMPC).

Indira Xavier e Larissa Mayumi | Belo Horizonte e São Paulo


A Verdade – Depois de muita luta e mobilização popular, foi eleito para presidente da República, Gustavo Petro, com origem na esquerda, juntamente com a vice-presidenta Francia Márquez, primeira mulher negra a ocupar este cargo. Quais foram as primeiras medidas deste novo governo?

Ana Cristina – É importante esclarecer uma questão antes de responder à pergunta: nós, marxistas-leninistas, não temos Gustavo Petro como um político de esquerda; dizemos que é um governo democrático.

Suas primeiras medidas foram a criação de uma coalizão de governo com os partidos de direita, com o argumento de avançar as pautas das reformas na Saúde, Trabalhista, Agrária e Aposentadoria, já que o atual governo não tem maioria na Câmara para aprovar suas propostas. 

Em contrapartida, foi apresentada a Reforma Tributária, motivada pela pressão da direita, que alega que, sem essa reforma, o país não teria orçamento suficiente para as reformas sociais que foram promessa de campanha do Petro. Mas a nossa avaliação é que é necessário recorrer às reservas internacionais e aplicar a moratória da dívida externa para ter os recursos necessários.

A assistência social começou, há mais ou menos um mês, com o atendimento às mulheres chefes de família e aos idosos que não recebiam previdência social, mas este modelo foi aplicado com vários critérios territoriais que restringem e constrangem os beneficiários.

Foi instalada a comissão que trabalhará na consolidação da “paz total”, com todos os grupos paramilitares, com a dissidência da guerrilha e com outros grupos que estão à margem da lei. Porém, esta medida se iniciou mal, pois, enquanto o governo suspendeu a prisão de lideranças paramilitares, não fez nada para libertar os jovens que estão presos. Por isso, lutamos pela liberdade dos jovens que protagonizaram a revolta social, que em grande parte contribuiu para o triunfo eleitoral de Gustavo Petro e Francia Márquez.

Muitos lutadores sociais foram presos e perseguidos por sucessivos governos de direita. Como estão os lutadores sociais hoje?

Os lutadores sociais e políticos estão em alerta máximo. Elementos desestabilizadores do governo de Gustavo Petro são uma realidade. A tática de Acordo Nacional para aprovar as reformas falhou e, por isso, o chamado de Petro para o povo ocupar as ruas.

Há uma polarização na Colômbia: de um lado, os setores democráticos que anseiam por uma mudança democrática e, do outro, uma direita reacionária, que não aceita perder seus privilégios e faz de tudo para recuperar o governo. Por isso, dizemos que o processo de conspiração contra o governo Petro está se intensificando em diversos setores.

Até agora171 líderes foram assassinados, mesmo número que ocorreu em 2021. É urgente uma política de segurança que proteja o povo, porque não param de aparecer novos grupos paramilitares.

Como foi a participação das mulheres nas mobilizações nos últimos anos?

As mulheres, sobretudo as jovens, desempenharam um papel fundamental nas lutas sociais, sendo muitas delas protagonistas na organização dos bloqueios. Também organizaram as brigadas de saúde, que deram condições ao conjunto das mulheres, em suas diversas necessidades, assumirem a linha da frente das lutas, ou seja, estiveram na vanguarda e retaguarda do processo dos enfrentamentos. As mulheres estiveram presentes nas lutas pela recuperação das terras que lhes foram tiradas pelos paramilitares, na busca da verdade e justiça da repressão vivida na Colômbia, hoje revelada ao mundo com os detalhes horripilantes dos acontecimentos, pelo paramilitar Mancuso, detido nos Estados Unidos.

Quais são as principais reivindicações do movimento de mulheres?

Nós, da OMPC (Organização de Mulheres dos Povos da Colômbia), acreditamos que as principais reivindicações das mulheres trabalhadoras se referem ao direito de trabalhar sem o medo do conflito armado ainda vigente na Colômbia, apesar das negociações de paz. Defendemos o direito à segurança, à vida, à moradia, alimentação básica, creches 24 horas, restaurantes e lavanderias comunitárias que facilitem o acesso ao trabalho, sobretudo para as trabalhadoras dos setores mais precarizados e sem garantia de direitos.

Hoje está na ordem do dia o direito a um pão e um prato de comida, pois a crise se agudiza todos os dias e, se o presidente Gustavo Petro não toma as medidas pertinentes, assistirá às mulheres ocupando as ruas para exigir pão para os seus filhos.

Que medidas específicas para as mulheres o atual governo tomou?

Nestes nove meses de governo, foram tomadas medidas paliativas, mas não fundamentais, para resolver a profunda crise econômica que afeta diretamente as mulheres e que vem se agravando desde a pandemia.

Somente no mês de maio, iniciou-se o reconhecimento do atendimento ao idoso, onde as mulheres são incluídas com tarifa diferenciada segundo tabela que qualifica os territórios de acordo com o número de habitantes.

A partir do mês de maio, foi também concedido o pagamento de uma renda cidadã das famílias, em que as mulheres são chefes de família, mas também diferenciado de acordo com o território onde vivem, o número de filhos e a idade dos mesmos, e é pago, a cada dois meses. Seu valor flutua e não é maior que um salário mínimo.

Foi criado o Ministério da Igualdade e a vice-presidenta Francia Márquez foi nomeada para o cargo. Este Ministério tem três objetivos fundamentais e imediatos: 1. Alcançar a igualdade salarial entre homens e mulheres pelo mesmo trabalho realizado; 2. Reconhecer o tempo de trabalho doméstico para a aposentadoria e 3. Renda vitalícia: meio salário mínimo para a mãe chefe de família. Com isso, pretende-se que as mulheres tenham autonomia econômica, empoderamento político, garantias de direitos e oportunidades para a juventude. Mas, como não tem recursos nem estrutura o Ministério ainda não iniciou suas funções.

As mulheres tiveram uma importante vitória, que foi a não penalização do aborto até 24 semanas de gestação. Como foi a mobilização para alcançar essa conquista?

O processo de mobilização com as palavras de ordem: “o corpo é meu e eu decido sobre ele”. “Educação sexual para decidir, anticoncepcionais para não abortar”.

A mobilização foi protagonizada pelas diferentes organizações feministas com grande visibilidade de mulheres jovens, mobilizadas com palavras de ordem de liberdade para decidir sobre seus corpos. Aspiravam que a aprovação do aborto fosse para além dos três casos já regulamentados: estupro, perigo de vida para a mãe e deformidade no feto.  

Tudo isso gerou polêmica com as diversas igrejas, que sustentam que o aborto é uma forma de matar vidas indefesas.

O aborto aprovado nos três casos mencionados acima, que foi recentemente aprovado pela justiça, não une todas as mulheres do povo, devido a diferentes opiniões políticas, religiosas e sociais.

Em julho, será realizado o Encontro de Mulheres da América Latina e Caribe. Como o Movimento de Mulheres Colombianas se preparou para participar? 

A preparação do encontro se iniciou desde o momento em que as mulheres que estiveram na Venezuela, em 2011, na Conferência Mundial da Mulheres de Base, decidiram construir os Encontros de Mulheres da América Latina e do Caribe.

Então foi realizado o 1º Encontro na República Dominicana, onde se viveu uma experiência política que fortaleceu as Mulheres na América Latina e Caribe. Da OMPC, participaram apenas 12 mulheres.

No Equador, houve uma participação mais massiva e, entre muitas, pudemos compartilhar a experiência vivida, o que aprendemos.

Para o 3º Encontro, realizamos uma pré-inscrição de mais de 80 mulheres que participaram das diferentes discussões dos temas das 16 mesas de trabalho a serem realizadas no Brasil.

As expectativas são grandes: encontrarmos as diversas representações de mulheres, mas também conhecer quais são os mecanismos de ação para a unidade e a luta pela emancipação das mulheres e organizarmos um movimento de mulheres pautado a partir do conceito de gênero e classe.