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domingo, 22 de dezembro de 2024

Mercedes Baptista e o Ballet Negro

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O Theatro Municipal teve sua primeira bailarina negra integrando o corpo de baile da companhia somente em 1948, após quase 40 anos de sua criação. Mercedes Baptista foi pioneira no ballet clássico e com a bagagem que acumulou em sua brilhante trajetória foi também precursora na dança afro-brasileira.

Julia Penteado | Rio de Janeiro


CULTURA – “Meninas negras não são incentivadas a serem grandes bailarinas” diz Bethania Gomes, primeira brasileira a alcançar o posto mais alto de uma companhia internacional.  Não é dúvida para ninguém que a história do ballet inicia-se na Europa, entretanto, poucos sabem que ele tem sua origem mais especificamente na Itália e tinha como principal objetivo entreter a nobreza.

Todo processo histórico de desenvolvimento dessa arte foi caracterizado pela demonstração de poder e status, relação que foi consolidada na corte francesa. Neste período, o rei tinha a possibilidade de estabelecer regras de comportamento, expressas pelo padrão de movimentos e comportamentos que inspiram as coreografias. 

Marcela Renata Sílverio escreve um pouco sobre em sua tese “O corpo Negro e o esteriótipo da bailarina”, pontuando também que nas apresentações, era exigido que os bailarinos não dessem as costas ao rei, deveriam ter postura e utilizar um figurino específico. 

Desde sua origem, essa dança clássica contava com um corpo de baile composto somente por pessoas brancas, principalmente devido ao momento histórico em que o ballet começa a se expandir, no final do século XVI, no qual os povos negros estavam sendo tirados de seus países e trazidos para as Americas para serem escravizados. 

Essa exclusão fica nítida ao observar não só os componentes da companhias, mas também as demais estruturas do ballet. No cenário clássico, a cor da sapatilha sempre deve acompanhar a cor da meia calça, para que exista uma continuidade na cor da perna para o pé. Apesar desse fato, as marcas pouco produzem os materiais de dança nos mais variados tons de pele negra. 

Racismo desde a infância no ballet clássico

Além disso, são inúmeros relatos de racismo na infância de grandes nomes do ballet clássico e no geral das experiências das pessoas negras, sobretudo por causa da enorme pressão estética imposta dentro do mundo da dança, estabelecendo um padrão mais próximo possível dos corpos brancos. 

É possível perceber que tudo ligado ao corpo negro não é visto como digno de uma dança clássica, desde os fios de cabelos encrespados até a escura pontinha do pé. Nesse viés, ainda é válido ressaltar a falta de identificação nas aulas e nos espetáculos, já que pessoas negras não ocupam papéis de protagonismo nas apresentações e são poucas as crianças pretas que têm acesso desde pequenas ao ensino do ballet clássico.

Retrato do caráter de raça do ballet, somente em 1948, o Theatro Municipal teve sua primeira bailarina negra integrando o corpo de baile da companhia, após quase 40 anos de sua criação. Mercedes Baptista foi pioneira no ballet clássico e com a bagagem que acumulou em sua brilhante trajetória foi também precursora na dança afro-brasileira.

Seus estudos iniciaram- se no ano de 1945, momento em que passa a frequentar as aulas do serviço nacional de teatro, ministradas pela bailarina Eros Volúsia. A professora foi fundamental em sua carreira, visto que abriu seus olhos e caminhos para dança, pois era conhecida por sua pesquisa sobre a cultura negra e indígena nas coreografias. Concluiu sua formação na escola do Theatro Municipal, tendo aulas com Yaco Liderberg, um renomado educador do ballet que buscava trazer diferentes perspectivas e experiências com as aulas dos bailarinos iniciantes. 

Um de seus alunos relata que antes mesmo de iniciar o ensino sobre ballet clássico, o professor ensina marcha, samba e bolero, a fim de verificar como cada corpo responde aos movimentos de cada ritmo. Por ser destaque na Escola do Theatro, foi aprovada no concurso para participar do corpo baile, mas apesar disso era pouco escolhida para papéis de protagonismo.

O Teatro Experimental do Negro

ARTE POPULAR. Duas cofundadoras do grupo: Arinda Serafim e Marina Gonçalves, ensaiando o papel da “velha nativa” em O imperador Jones (Foto: José Medeiros)

É fundamental reconhecer as contribuições de Abdias Nascimento no processo de sua carreira, sobretudo enquanto ativista e fundador do Teatro Experimental do Negro, do qual Mercede Baptista foi atuante. Seu papel foi imprescindível na criação de uma nova estética do teatro brasileiro, dando grandes oportunidades aos artistas negros do país e produzindo arte negra. Além de incentivá-la a seguir sua carreira na dança de forma a enfrentar o racismo que gritava nas salas de ballet. 

Em um dos espetáculos promovidos pelo Teatro Experimental do Negro, a bailarina chama atenção de Katerine Dunham. A última, conhecida como pioneira no ballet negro americano e diretora de uma companhia composta majoritariamente por dançarinos negros, concede à Mercedes uma bolsa de estudos em sua escola, para estudar fora durante um ano.

Ao voltar ao Brasil, abre sua própria escola de Ballet Folclórico Mercedes Baptista, inicialmente com a proposta de receber apenas alunos negros de forma gratuita. Sua primeira experiência de aula contou com diversas pessoas pretas na turma com sonho de serem artistas, sendo eles porteiros, faxineiros e empregadas domésticas. Sua nova forma de dança contava com capoeira, danças de matrizes africanas, cantores e diversos elementos da cultura negra brasileira. 

Mercedes também é conhecida por revolucionar com seus passos a cultura carnavalesca, ao instaurar coreografia para a comissão de frente do Salgueiro, primeiramente. Na década de 1960, a dançarina passa a integrar os desfiles de tal escola de samba, implementando novos elementos coreográficos, como por exemplo as alas coreografadas, depois instauradas nas demais escolas.

A bailarina dedicou boa parte de sua vida ao ensino e foi professora da Escola do Theatro Municipal, aplicando a aula de dança afro-brasileira, além de ter em seu currículo de docente seus cursos ministrados em algumas universidades de dança dos Estados Unidos. 

Além de Mercedes, outras trajetórias de mulheres negras bailarinas se entrelaçam ao longo da história do ballet brasileiro. Destacamos aqui três delas:

Consuelo Rio, figura de suma importância para o ballet brasileiro. Consuelo foi ailarina contemporânea a Mercedes Baptista, que dois anos antes dela tentou se inscrever para o concurso para integrar o corpo baile do Theatro Municipal e poderia ter sido sua primeira participante negra. Entretanto, em sua tentativa foi informada que as inscrições estavam encerradas, falsa explicação motivada por racismo. Além disso, dedicou sua carreira ao ensino do ballet clássico e na produção de diversos espetáculos. 

Bethania Gomes,a  primeira brasileira negra a ser ocupar o cargo mais alto em um corpo baile internacional – o posto de primeira bailarina – e filha da grande ativista Beatriz Nascimento. A dançarina, inclusive, relata durante várias entrevistas as inúmeras discriminações que sofreu no ballet por conta de sua raça, o que motivou-a a fazer sua carreira em outro país, onde ganhou destaque na companhia do Harlem e se apresentou na África do Sul com Nelson Mandela na plateia. 

Por fim, Ingrid Silva, bailarina brasileira que hoje compõe a companhia “Dance Theatre of Harlem” e é grande referência no Brasil. Iniciou sua trajetória aos 8 anos, quando conseguiu uma vaga para participar das aulas de ballet promovidas por um projeto social, que visava dar oportunidades para crianças das favelas e periferias do Rio de Janeiro. A dançarina é extremamente conhecida por seu marco na história do ballet brasileiro, quando expôs que pintava suas sapatilhas da cor da sua pele. 

Inúmeros fatores apontam o caráter europeu e excludente do ballet clássico, importante reiterar que até os dias de hoje não existiu bailarina negra solista ou primeira bailarina do Theatro Municipal. 

Infelizmente, o Brasil pouco reconhece a contribuição das mulheres negras para o país e há muitas poucas oportunidades para bailarinas negras no território, por isso muitas optam por seguir carreira no exterior. Entretanto, essas bailarinas tiveram um papel importante na história do ballet negro do Brasil, abrindo caminhos para que cada vez mais meninas negras sejam incentivadas a se tornarem grandes bailarinas.

 

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