Carlos Hermida: “A Espanha não tem uma política exterior própria e está submetida ao que mandam os Estados Unidos”

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A Verdade entrevistou o dirigente comunista espanhol Carlos Hermida, do Partido Comunista da Espanha (marxista-leninista). Nesta entrevista, Hermida explica a situação política do seu país, denuncia as causas do ascenso do fascismo na Europa e fala das principais lutas atualmente desenvolvidas pela classe trabalhadora espanhola.

Redação 


A Verdade – Qual é a situação política na Espanha?

Carlos Hermida – Antes de responder às perguntas, quero expressar meu agradecimento ao jornal A Verdade por esta entrevista, que me permite, em nome do Partido Comunista da Espanha (marxista-leninista), dar a conhecer alguns aspectos da realidade política da Espanha. Muito obrigado, camaradas. Envio uma saudação fraternal e solidária para todos os militantes do PCR, do Brasil, e para todos os trabalhadores brasileiros.

Agora, respondendo à pergunta, em 23 de julho deste ano, aconteceram eleições gerais na Espanha. O Partido Popular (PP), de direita, ganhou as eleições, mas não conseguiu a maioria absoluta. Em segundo lugar ficou o Partido Socialista Operário Espanhol (PSOE).

O rei Felipe VI propôs Núñez Feijoo, do Partido Popular, como candidato à chefia do governo, mas só teve para isso apoio do partido VOX, de extrema direita, e, por isso, não obteve sucesso. Diante disso, o rei propôs Pedro Sánchez, liderança do PSOE e então presidente do país em exercício. Sánchez articulou o apoio de cinco partidos, entre eles o partido independentista Juntos pela Catalunha. Esse acordo do candidato “socialista” com os independentistas, que prevê que o governo promulgará uma anistia aos indiciados pela declaração de independência da Catalunha, declarada ilegal pela Suprema Corte e brutalmente reprimida pelo Estado espanhol, em outubro de 2017, foi determinante para que Sánchez foi reconduzido à presidência. 

A direita lançou uma ofensiva para impedir a nomeação do candidato do PSOE, convocando numerosas manifestações de ruas, em novembro, onde grupos nazistas e fascistas enfrentaram a polícia. Sem dúvida, o novo governo vai enfrentar uma situação muito difícil, pois a oposição de direita é muito forte e não será fácil firmar acordos com os cinco partidos da coalizão para fazer seus projetos de lei caminharem no parlamento. 

Por outro lado, e como já havia ocorrido na legislatura anterior, o governo de Pedro Sánchez promoverá uma política econômica em favor da oligarquia, que provocará frustração e revolta nas classes populares. Nesse contexto, é preocupante o crescimento do fascismo, que se apoia no descontentamento popular provocado pela crise econômica para ampliar sua presença na sociedade.

Então, o fascismo continua existindo na Espanha?

Sim! O fascismo é representado pelo VOX, que possui uma importante bancada parlamentar e está em vários governos locais. Além disso, existem diversos grupos violentos, de caráter nazista, que tiveram destaque nas manifestações de novembro contra a anistia proposta por Sánchez aos independentistas catalães. 

O fascismo também está presente no seio das Forças Armadas, na polícia e nos tribunais de justiça. Esse problema vem de muito tempo. Durante a mal chamada “transição democrática (1976-1978), que teve início após a morte do ditador Francisco Franco, o aparato do Estado não foi depurado, mas passou a servir integralmente à monarquia, que havia imposto Franco e sua ditadura fascista. Apesar da Constituição de 1978 e do regime parlamentar, os funcionários eram os mesmos que haviam prestado serviço durante a longa ditadura franquista, que durou de 1939 à 1975. Policiais e militares torturadores e que haviam condenado à morte milhares de republicanos continuaram em seus postos. Dessa forma, o fascismo se manteve em muitas instituições. 

Grande parte da responsabilidade desta situação cabe à esquerda reformista, revisionista, que pactuou com os franquistas e aceitou suas condições para sair da ditadura.

Há uma grande imigração na Espanha. Como vivem os imigrantes no país? 

Na Espanha, existem cerca de 6,4 milhões de imigrantes, que trabalham principalmente na rede hoteleira, na construção civil, como empregados domésticos e na agricultura. Sofrem com contratos precários, sem direitos e com longas jornadas de trabalho. No caso da agricultura, muitos imigrantes ilegais sofrem uma brutal exploração, que se aproxima da escravidão, principalmente na colheita de frutas. 

Esses trabalhadores pagam de impostos ao Estado coisa de 70% do que recebem. Ao todo, os imigrantes contribuem com 10% da arrecadação da Seguridade Social. Apesar da extrema direita dizer a mentira de que recebem mais que os cidadãos espanhóis, a verdade é que há setores da economia que sem a presença dos trabalhadores imigrantes se encontrariam numa situação muito difícil em relação à falta de mão de obra. 

O problema principal é que o governo se omite de combater os abusos dos patrões contra a força de trabalho imigrante, que se encontra numa situação de extrema vulnerabilidade. Para nós, comunistas, a palavra de ordem é clara: nativo ou estrangeiro, somos a mesma classe operária. 

Quais são as principais lutas que o Partido desenvolve hoje na Espanha?

Nosso Partido, desde sua fundação, em 1964, tem participado das grandes lutas protagonizadas pelo proletariado e pelas classes populares. Estivemos na linha de frente da luta contra a ditadura de Franco e pagamos, por isso, um trágico tributo de sangue. Depois, já como partido legal, continuamos a luta contra a monarquia e pela 3ª República. 

Atualmente, onde estamos presentes, participamos do movimento dos aposentados em defesa do sistema público de previdência por meio da corrente “Trabalhadores Pensionistas”, que tem um carácter de classe e vem popularizando a palavra de ordem “Governe quem governe, as pensões se defendem”. Este movimento está fazendo com que muitos jovens participem das manifestações, conscientes de que a defesa das pensões não é um assunto que diz respeito apenas aos aposentados, mas a todos os trabalhadores, que veem seu futuro ameaçado caso o governo consiga colocar em prática seu plano de privatizar a previdência social. 

No movimento popular, nosso trabalho se concentra na formação das chamadas “assembleias republicanas”. O que queremos é criar organismos amplos e capazes de formar tecido social republicano, estender a consciência republicana. Os problemas estruturais da Espanha só podem ser solucionados com uma mudança de regime, quer dizer, com uma República popular e federativa.

Quem foi Raúl Marco?

O camarada Raúl Marco nasceu em abril de 1936 e foi militante comunista desde sua juventude. Em 1964, junto com Elena Ódena, rompeu com o revisionismo carrillista (referência a Santiago Carrilo, ex-dirigente do Partido Comunista da Espanha) y fundo o Partido Comunista da Espanha (marxista-leninista), ao qual dedicou toda sua vida até o triste dia em que nos deixou, em 16 de outubro de 2020.

Raúl participou ativamente na fundação da FRAP (Frente Revolucionária Antifascista e Patriótica), organização da qual foi vice-presidente, e teve um papel decisivo na constituição da Conferência Internacional de Partidos e Organizações Marxista-Leninistas (CIPOML). 

O camarada Raúl Marco nos legou uma importante obra escrita em inumeráveis artigos, informes e publicações, mas, acima de tudo, nos deixou sua luta, sua abnegação e esforço, sua firmeza e coerência política e ideológica. Frente a tantas vacilações e traições, ele manteve sempre altas as bandeiras da República, do socialismo e do internacionalismo proletário. Raúl foi sempre o camarada, o companheiro e o amigo que tinha palavras de alento e estímulo para os militantes nos momentos difíceis de dúvidas e desânimo. Sua casa sempre foi um espaço aberto aos amigos, onde nos sentíamos como em nossa própria casa. 

Homem modesto, custou muito convencê-lo a escrever um livro de memórias, onde deixasse registradas suas experiências ao longo de tantos anos de luta. Felizmente, decidiu escrevê-la. “Lampejos e Recortes da História do PCE (m-l) e da FRAP” é uma obra de referência obrigatória para todos os interessados em conhecer em profundidade a história do comunismo espanhol e constitui uma ferramenta indispensável para entender a história do nosso Partido e seu importante papel na história da Espanha desde 1964. 

Se diz habitualmente que não existem pessoas imprescindíveis, mas elas existem sim, e a perda de Raúl é um vazio difícil de preencher. Nós, homens e mulheres formados no PCE (m-l), somos gratos por ele ter sido um exemplo de comunista. Raúl nos deixou um modelo de comportamento que nos comprometemos a seguir. O caminho que abriu e a semente que plantou com sua luta é a melhor herança para as jovens gerações de militantes do Partido.

Entrevista publicada na edição nº 284 do Jornal A Verdade