Falecido em julho do ano passado, Ismail Kadaré escreveu sobre temas como a memória da resistência da Albânia à ocupação nazifascista na Segunda Guerra Mundial (“O General do Exército Morto”) e a história do rompimento do país com o revisionismo chinês nos anos 1970 (“Concerto no Fim do Inverno”). Um de seus livros, “Abril Despedaçado”, foi adaptado ao cinema em 2001 por Karim Aïnouz e Walter Salles
Guilherme Arruda | Redação SP
No último dia 1º de julho, faleceu o escritor albanês Ismail Kadaré, aos 88 anos. Considerado o maior nome da literatura da Albânia, suas notáveis obras se passam em alguns dos principais momentos da história daquele pequeno e orgulhoso país, que por mais de quatro décadas foi um exemplo de sociedade socialista, independente e orientada pelo marxismo-leninismo.
Indicado ainda jovem para estudar no Instituto de Literatura Máximo Gorki da União Soviética, Kadaré foi posteriormente deputado e chegou a ocupar a vice-presidência da Assembleia do Povo no período do socialismo, além de ter sido membro destacado da Liga dos Escritores da Albânia. Editor e colaborador de revistas literárias, ele estimulou o desenvolvimento da arte e da cultura popular, com as quais também contribuiu imensamente com seus próprios livros.
Com o tom crítico que sempre as marcou, muitas de suas obras são indispensáveis para aqueles que querem conhecer passagens como a jornada de séculos da Albânia em busca de sua independência nacional, a luta dos comunistas para libertar o país da ocupação nazifascista e os caminhos que tomou a construção do socialismo na “Terra das Águias”.
A luta de um povo pela liberdade
Até o século XX, o povo albanês não viveu de forma livre e independente. Por muitos séculos, sua terra foi ocupada por invasores como o Império Otomano, a Itália fascista e a Alemanha nazista. A história de sua pequena nação, subjugada por potências estrangeiras mas sempre resistindo de variadas formas, ambienta uma parte importante dos livros de Ismail Kadaré.
Com seu primeiro romance, “O General do Exército Morto” (1963), o autor já alcançou grande reconhecimento nacional e internacional, apesar de ter apenas 26 anos. Em um certo sentido, a obra trata de elementos caros à luta por memória, verdade e justiça: sua história segue um padre italiano e um general alemão que, anos após a Segunda Guerra Mundial, voltam à Albânia para buscar os corpos dos soldados dos dois países que foram mortos pela vitoriosa resistência dos partisans à invasão nazifascista. Nesse ínterim, por meio das dificuldades de cumprir sua missão, rememoram os horrores da guerra e percebem que o povo albanês não se esqueceu dos crimes cometidos por aqueles soldados.
O livro chamou a atenção de Enver Hoxha, líder do país e dirigente máximo do Partido do Trabalho da Albânia, que já havia parabenizado Kadaré anteriormente pela qualidade de poemas publicados na adolescência. Por sua relação pessoal de décadas com Hoxha, críticos anticomunistas acusariam o escritor de “colaborador do stalinismo”, diferenciando-o dos chamados “autores dissidentes” de outros países do Leste Europeu.
Já em “Crônica na Pedra” (1971), lemos suas memórias sobre a vida em sua terra natal, Argirocastro, durante a ocupação nazista. Entre outros episódios, Kadaré relata o dia em que, ainda criança, conheceu Enver Hoxha, nascido na mesma cidade e que então comandava clandestinamente o movimento antifascista que expulsou os exércitos de Hitler e liderou a fundação da República Popular da Albânia em 1946.
Em outros trabalhos, como “Os Tambores da Chuva” (1970) e “A Ponte dos Três Arcos” (1978), o autor romanceia os eventos históricos e lendas da resistência dos albaneses na Idade Média à ocupação do Império Otomano, que duraria até 1912.
A Albânia contra o revisionismo
A defesa dos princípios do marxismo-leninismo contra os mais variados matizes do revisionismo foi o maior motivo do enorme reconhecimento que a Albânia teve no cenário internacional do século passado. Enver Hoxha e seus companheiros se enfrentaram no terreno ideológico, sucessivamente, com Tito e a Iugoslávia na década de 1940, Khrushchev e a nova direção soviética após a morte de Stálin, e a China vinte anos depois.
Este último conflito foi representado de forma envolvente e com impressionante profundidade por Ismail Kadaré em “Concerto no Fim do Inverno” (1988). Alternando entre a perspectiva de diplomatas, funcionários de ministérios, escritores, tradutores e um leque de outros personagens, a obra tem como pano de fundo a crescente divergência entre a China e a Albânia quando esta começou a criticar desvios como a aproximação do governo chinês com os Estados Unidos, nos anos 1970, como passos para a restauração do capitalismo. Para além do aspecto político, Kadaré se dedica a retratar os complexos e contraditórios efeitos da crise na vida pessoal de todos os albaneses, dos dirigentes partidários a ex-burgueses temerosos do rompimento, passando também pelos trabalhadores comuns.
As manobras de pressão da China, retratadas no livro, foram diversas: a criação de entraves para as trocas comerciais e tecnológicas, a chantagem individual contra quadros políticos e militares e a sedução de intelectuais foram algumas delas. Mesmo assim, o Partido do Trabalho da Albânia não recuou de suas críticas, tornando-se o principal ponto de apoio internacional para os comunistas que se mantiveram contrários ao revisionismo, inclusive no nosso país.
Repercussão no Brasil
A partir dos anos 90, o jornalista carioca Bernardo Joffily, que viveu na Albânia nas décadas anteriores trabalhando para a Rádio Tirana (uma rádio operada por militantes brasileiros que enviava notícias da resistência à ditadura para o interior do Brasil, evadindo a censura dos militares), se dedicou a traduzir os romances de Kadaré. Por isso, felizmente, quase uma dezena de seus livros podem ser encontrados em português. A primeira publicação de um de seus livros em nossa língua, porém, veio décadas antes: “Os tambores da chuva” já havia sido lançado pela editora marxista-leninista portuguesa Maria da Fonte em 1976.
Além disso, outra de suas obras chegou a ser adaptada por brasileiros, mas para as telas de cinema. Trata-se de “Abril Despedaçado” (1980), novela sobre as vinganças entre famílias previstas pelo Kanun, a sangrenta lei tradicional da Albânia feudal que vigorou até o século XX e só foi abolida pela revolução socialista. A história foi transformada em filme (e deslocada para o interior da Bahia) no ano de 2001 com roteiro de Karim Aïnouz e direção de Walter Salles, também responsável pelo recente Ainda Estou Aqui, que já levou 3 milhões de pessoas para conhecer a luta de Rubens Paiva e Eunice Paiva contra o regime militar.
Assim como ocorreu com Jorge Amado, que escreveu as obras-primas do romance proletário brasileiro, Ismail Kadaré veio a romper amargamente com o comunismo e seu próprio passado político. Sua “conversão” ao liberalismo mais rasteiro foi muito aplaudida pelo establishment literário burguês, e seus pueris comentários e escritos mais recentes sobre o socialismo chegam ao ponto do patético e calunioso. Contudo, a exemplo do caso do escritor baiano, que ainda nos inspira com clássicos como “Subterrâneos da Liberdade” e “Seara Vermelha”, a opinião pessoal do artista conta menos que a realidade concreta: a própria formação de Kadaré enquanto escritor é atestado do desenvolvimento das artes na Albânia socialista, em contraste com a inexistência de uma literatura nacional antes da Revolução de 1944 e a inexpressividade do que foi produzido (inclusive pelo próprio Kadaré) após a restauração capitalista de 1991. Seus trabalhos seguem sendo uma ótima adição à formação literária, histórica e política do leitor, em especial o que quer conhecer mais sobre a Albânia do tempo de Enver Hoxha e do poder popular.