A impunidade de crimes cometidos pelo Estado ao longo da história brasileira, desde a escravização até a ditadura militar, fortalece aqueles que hoje atentam contra a democracia. Garantir memória, verdade e justiça é essencial para responsabilizar os golpistas do passado e os de hoje.
Vivian Mendes | Diretório Nacional da UP
SOCIEDADE – No dia 14 de fevereiro, o Supremo Tribunal Federal (STF), em sessão plenária, reconheceu a “repercussão geral” sobre um recurso que deve ser julgado e que contesta se a Lei da Anistia de 1979 contempla ou não os crimes de ocultação de cadáveres cometidos pelo Estado durante a ditadura militar.
O Tribunal foi provocado a partir de um caso concreto: a denúncia do Ministério Público Federal do Pará, apresentada em 2015, contra os tenentes-coronéis do Exército Lício Augusto Ribeiro Maciel e Sebastião Curió Rodrigues de Moura, acusados de matar e ocultar os cadáveres de militantes na Guerrilha do Araguaia.
Reconhecer a “repercussão geral” significa que o STF vai julgar a matéria de fundo debatida no recurso e a decisão deve ser seguida pelas demais instâncias do Poder Judiciário em casos semelhantes. Ou seja, se o Tribunal julgar que a ocultação de cadáver não é um crime protegido pela Lei de Anistia, os agentes do Estado poderão, enfim, ser responsabilizados por algumas das atrocidades que cometeram contra o nosso povo.
A tese apresentada pelo ministro Flávio Dino é de que ocultação de cadáver é um crime continuado, que não se encerrou, já que se mantém a omissão do local onde se encontra o cadáver e o impedimento dos familiares de exercerem seu direito ao luto.
Mas essa não é a primeira vez que a aplicação da Lei da Anistia no Brasil é questionada. Em 2010, a Corte Interamericana de Direitos Humanos condenou o Brasil no caso “Gomes Lund e outros” – conhecido como Caso Araguaia. O Tribunal Internacional determinou, entre outras coisas, que o Brasil investigasse, processasse e punisse os agentes de Estado envolvidos nos crimes e que localizasse os restos mortais dos desaparecidos políticos. A condenação questiona a aplicação da Lei de Anistia brasileira para os crimes cometidos pelo Estado, não reconhecendo “autoanistia” de um regime autoritário.
É importante lembrar que a Lei da Anistia, promulgada em 1979, é resultado de uma luta popular e profunda na sociedade brasileira daquele período. Porém, sua aplicação não foi ampla, geral e irrestrita como nós defendemos na época. Vários militantes presos e exilados, acusados do que o Estado classificou como crimes “de sangue”, não foram contemplados por ela e continuaram presos ou não puderam voltar ao país. Por outro lado, sua interpretação distorcida permitiu que os crimes cometidos pelo Estado ditatorial e seus agentes fossem perdoados, situação que sequer é citada na lei.
Punição aos golpistas
O fato é que, tanto os crimes continuados quanto os demais cometidos pelo Estado fascista e autoritário durante a ditadura militar – como torturas, sequestros e assassinatos – são graves violações de direitos humanos e crimes de lesa-humanidade. Por isso, são imprescritíveis e não podem ficar impunes.
Os golpistas de hoje, que buscam anistia de seus crimes atuais contra a democracia, são a herança de uma sociedade construída sobre a impunidade dos crimes cometidos pelo Estado, desde a escravização e genocídio dos povos negros e originários, passando pelas ditaduras, e perpetuando-se nos dias atuais.
Nos cabe a tarefa de levantar bem alto a bandeira por memória, verdade e justiça. Só a luta nos permitirá alcançar a resposta de “onde estão nossos desaparecidos políticos” e colocará os generais golpistas, de ontem e de hoje, atrás das grades.
Matéria publicada no jornal A Verdade impresso edição nº308