Mesmo com diversos métodos contraceptivos e possibilidade de aborto legal, a saúde reprodutiva das mulheres sempre estará em risco no sistema capitalista.
Laís Muniz* | São Paulo (SP)
A legalização do aborto é uma questão de saúde pública por diversos motivos, como por sua alta mortalidade em clínicas clandestinas ou até mesmo pelo direito de escolha com base na saúde física e mental da gestante. Muito se fala sobre os corpos livres, mas o que seria de fato essa liberdade?
Atualmente, o Sistema Único de Saúde (SUS) possui uma gama de métodos contraceptivos para a população, podendo variar de região para região e de investimentos na saúde pública. Entre eles podem se encontrar o anticoncepcional oral, os injetáveis (mensal ou trimestral), os dispositivos intrauterinos (DIU), o implante subdérmico, diafragma, a pílula do dia seguinte, as camisinhas e os métodos cirúrgicos (laqueadura e vasectomia). Os que se intitulam de “pró-vida” utilizam desses métodos como argumento para lhe fazer acreditar que “se você engravidou, foi culpa sua”.
Informações sobre saúde reprodutiva não chegam à população
O que não está esclarecido para a população é que mesmo com o método mais eficaz utilizado, não há como garantir que não haja uma gravidez. O índice de falha pode chegar a 21% dependendo do método escolhido, como é o caso da camisinha feminina. Mesmo com os métodos cirúrgicos, ainda há pelo menos 0,1% de chance de um método falhar, como é o exemplo de uma vasectomia. Até a laqueadura que muitas consideram como sua libertação tem 0,5% de falha.
Outra informação pouco difundida é que o diagnóstico de infertilidade, muito ligado por exemplo a endometriose e a síndrome dos ovários policísticos, não te deixa isento da capacidade de gerar novos indivíduos, apenas uma maior dificuldade para fecundação. Logo, esse termo está ainda muito distante da esterilidade. É preciso que essas informações sejam difundidas para todos, principalmente quando houver o debate sobre saúde gestacional, já que os números apontam que nem toda gravidez indesejada é oriunda de falta de preservação.
Para além das mulheres, corpos de homens trans e pessoas não binárias também podem passar pelo período de gestação. Desta forma, a responsabilidade da gestação não pode ser, exclusivamente, de quem gesta.
Segundo o Ministério da Saúde, ao menos 1 milhão de abortos são induzidos no Brasil todo ano e esse número independe da classe social, o único recorte é nas mortes dessas pessoas. Não é escondido de ninguém que existe a população restrita ao julgamento e ela tem cor, endereço e renda estipulada. Enquanto mulheres negras, pobres e periféricas morrem em pedidos de socorro, existem mulheres que conseguem facilmente um atendimento digno e apoio (ou até mesmo pressão) familiar para fazer o procedimento. A legalização do aborto é uma bandeira por sensibilidade com as que já estão vivas sofrendo que é preciso apoiar esse movimento.
Diversos estudos já foram feitos sobre a diminuição de abortos registrados nos locais onde há a legalização, então se é de interesse dos “pró-vidas” que isso ocorra, por que não apoiar? Ou só vale para a parente que destruiria a própria vida com a gravidez indesejada? E o que eles falam sobre as crianças que não possuem a oportunidade de viver por causa da opressão do estado? Ou onde estão os defensores da gestação de menores quando a discussão é o apoio psicológico das crianças abusadas sexualmente? Por que ser contra a educação sexual nas escolas? Onde estão os que incriminam o aborto quando o debate são os cuidados dos filhos das trabalhadoras?
No Brasil, com o crescimento descarado e cínico do fascismo, corremos risco de perder o que já foi conquistado: o direito do aborto legal para situações em que o feto seja anencéfalo, que exista risco à estante ou em caso de estupros.
Quantas matérias já vimos ou lemos sobre o não cumprimento do que é imposto por lei? Nos últimos anos, é noticiado diversos casos em que a lei não se cumpre quando se refere ao aborto legal. Um exemplo é o da criança de 11 anos que foi exposta nas mídias pela influenciadora Sara Winter e pela Thaís Maranhão do Portal Fidei, recebendo ofensas e pressão social por interromper uma gestação fruto de um abuso sexual que ainda era um risco para a sua saúde e vida.
Por um aborto legal e seguro
Essa ação levou ao debate e à pressão popular por um aborto completamente legal e necessário. Fora o descaso do estado que permitiu que o sofrimento dessa menina se prolongasse de 22 semanas (quando pediu ajuda) até 29 semanas de gestação.
Importante lembrar que mesmo com números altos, eles não são condizentes com a realidade. As mulheres da classe trabalhadora sofrem, morrem e viram subnotificações todos os dias. O respaldo da lei ainda é falho e opressor, já que mesmo abaladas psicologicamente são assediadas em delegacias ou em clínicas e hospitais que prestam o serviço. Hoje o médico do local, em casos que não sejam de emergências, pode escolher não realizar o procedimento se não tiver coerência com sua convicção, o que leva a vítima a implorar por um atendimento. Então até que ponto nos é assegurado o atendimento clínico?
Precisamos estar munidos de conhecimento e que o falso moralismo não nos desmotive da luta. Não podemos ignorar os fatos que são esfregados nas nossas caras todos os dias: enquanto mulheres pretas e periféricas são usadas como aparelhos reprodutores de mão de obra barata, a saúde reprodutiva das mulheres estará longe de ser uma prioridade do sistema capitalista.
*Laís Muniz é biomédica e militante do Movimento de Mulheres Olga Benario