Moradores da Ocupação dos Imigrantes resistem e impedem despejo em audiência no TJSP.
Victoria Magalhães | São Paulo (SP)
LUTA POPULAR – Em junho, mês em que se completaram quatro anos de luta da Ocupação dos Imigrantes Jean-Jacques Dessalines, as famílias organizadas pelo Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas (MLB) receberam a intimação judicial para uma audiência que marcaria a data da reintegração de posse do imóvel.
A ocupação, realizada durante a pandemia da Covid-19 e, em 2023, conquistou a suspensão da reintegração de posse graças à luta, utilizando a ADPF 828, conhecida como “Lei da Despejo Zero”, conquistada pelos movimentos sociais para impedir as remoções forçadas enquanto durasse a pandemia e na “transição” para o pós-pandemia, que deveria garantir que, no caso de necessidade de remoções, se buscassem soluções fundiárias para evitar que as famílias ficassem desabrigadas.
Contudo, a fase de transição tem sido ignorada e a lei não tem sido aplicada como previsto. Segundo levantamento realizado pela Campanha Nacional Despejo Zero, mais de 1,5 milhão de brasileiros estão sob risco iminente de despejo. Só no estado de São Paulo, 9.508 famílias foram despejadas entre outubro de 2022 a julho de 2024. Outras 90.015 pessoas estão sob ameaça de despejo. Este é o caso da Ocupação dos Imigrantes.
A Ocupação fica!
No dia 08 de julho, às 14h, foi realizada a “Audiência final de conciliação”, promovida pelo Grupo de Apoio às Ordens Judiciais de Reintegração de Posse (Gaorp) e pela Comissão Regional de Soluções Fundiárias do Tribunal de Justiça de São Paulo. A audiência convocou o suposto proprietário do imóvel abandonado há décadas, órgãos da prefeitura, Secretaria Municipal de Habitação e outras secretarias relacionadas a desenvolvimento social, a Policia Militar, Policia Civil, Secretária de Direitos Humanos e a Defensoria Pública, entre outros, além de uma comissão representando as famílias da Ocupação.
Segundo a coordenação do movimento, apesar do histórico dessas audiências demonstrar baixa capacidade de resolver o conflito, mediar as negociações ou garantir direitos, as mulheres do movimento, que são as principais lideranças da luta, compareceram ao TJ determinadas a enfrentar a Justiça e conquistar a vitória.
“Fomos até a audiência em ato, com uma grande manifestação que marchou até a frente do Tribunal com as famílias da Ocupação e apoiadores. A manifestação seguiu firme até o final da audiência, entoando palavras de ordem contra a remoção da Ocupação, pelo direito à moradia e pela necessidade da construção do socialismo. Entramos na audiência numa comissão de quatro mulheres, e junto com nossos advogados, que são de escritórios populares e grandes aliados do movimento”, relatou Perseveranda Pelajia, moradora e coordenadora da ocupação.
Perseveranda continuou: “Fomos até lá tendo ouvido o relato de outras ocupações que já haviam passado por esse processo e apontavam que nunca saiam soluções desta audiência. Mas nós decidimos que desta vez seria diferente. De um lado tínhamos um homem que se diz proprietário com uma dívida milionária com a prefeitura e é dono de mais de 20 prédios no Centro da cidade, ou seja, um grande especulador; e do outro famílias trabalhadoras que têm o direito de viver e de morar.”
Durante a audiência, tanto os advogados do proprietário quanto os representantes da gestão Ricardo Nunes tentaram encerrar rapidamente o debate, afirmando que não havia alternativa possível à remoção forçada da ocupação no prazo de 60 dias. A estratégia buscava impor uma solução unilateral, ignorando os direitos e as necessidades das famílias ocupantes.
Entretanto, integrantes do movimento intervieram, apresentando iniciativas construídas coletivamente na ocupação, como ações de geração de renda, valorização da cultura negra, formação política, mutirões de limpeza e turmas de alfabetização organizadas pelo movimento e as famílias. Destacaram também o papel central da Ocupação dos Imigrantes no resgate da história e na preservação do patrimônio da cultura negra no bairro da Liberdade, região histórica do centro de São Paulo. Com base no Estatuto da Criança e do Adolescente, defenderam que a remoção seria uma violação dos direitos das crianças que ali vivem com dignidade, segurança e acesso à educação garantido, em um ambiente de cuidado coletivo.
Alexandrine Maivais, imigrante haitiana que coordena da Ocupação, destacou em seu depoimento durante a Audiência: “Vocês sabem como é a vida de uma mulher como eu, imigrante haitiana, avó, trabalhadora, após chegar em seu país? Nós chegamos aqui achando que este país é acolhedor, mas não é acolhedor para nós. Chegamos aqui, mulheres pretas, e não temos nada! Não tem trabalho, não tem moradia, não tem nada! A gente tem que se virar, a gente é humilhada, a gente passa fome com nossas crianças. Se não fosse a luta, se não fosse a ocupação e o MLB, não sei o que seria de nós. Nós fomos salvas e hoje lutamos como Jean-Jacques Dessalines lutou no Haiti. Vamos seguir lutando.”
“Vocês não são como nós. Não vivem como nós. Não moram como nós. Não é possível que sejam vocês, os que moram e comem bem, que decidirão o nosso destino. Nós somos donos do nosso destino”, completou.
Ao final da audiência, após todas as partes serem ouvidas, o poder público não apresentar qualquer proposta de mediação e as famílias realizarem suas intervenções, a juíza decidiu suspender a reintegração de posse. Determinou que a remoção não poderia ser realizada na data prevista e que seria marcada uma nova audiência para apresentar alternativas às famílias. A decisão surpreendeu, pois a audiência era considerada “final”. Para o movimento, essa conquista foi fruto das intervenções firmes e organizadas das mulheres sem-teto, que, com argumentos combativos e revolucionários, garantiram ao Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas (MLB) mais uma suspensão da reintegração de posse.
Em entrevista ao Jornal A Verdade, Alexandrine contou: “O homem, ricaço, que se diz dono do prédio, não foi. Mandou apenas três advogados. Mas os advogados deles não tinham respostas para dar, porque tudo o que nós falamos estava certo. Então, ficaram sem palavras. Foi muito bom! Foi mais uma vitória, mais um marco de resistência para a Ocupação Jean Jacques. É importante: com organização e resistência, nós, o povo, podemos tudo!”
Para Priscila, coordenadora do movimento, “essa vitória representa um marco importante na luta por moradia no centro de São Paulo. Conseguimos desmascarar o teatro do poder público, que convocou uma audiência sem apresentar nenhuma alternativa concreta ao povo e recuou diante de cada proposta feita pelo próprio movimento. Mostramos que estavam pisoteando a memória popular ao ignorar todo o trabalho patrimonial que desenvolvemos no bairro da Liberdade e na Baixada do Glicério, resgatando e mantendo viva, em cada ação, a história do povo preto, indígena e pobre de São Paulo. Essa vitória mostrou às famílias, militantes e apoiadores que, coletivamente, somos capazes até do impossível e que não precisamos aceitar qualquer coisa.”
Parafraseando o poeta Aloysio Letra: “Estou enterrado na Rua da Glória / Lembre de mim se passar por aqui / Sou fato oculto da tua história / Mas veja ainda estou aqui”. A Ocupação dos Imigrantes vive e luta e segue sendo exemplo de que um povo organizado pode tudo!