“Aqui estamos nós, mães e crianças de vários lugares do Ceará. É com nosso sangue que lhe dirigimos a palavra. Sangue humano que corre em nossos corpos. Sangue que faz colorir a rosa da vida, essa dádiva preciosa e sem preço, que nem o dinheiro do mundo todo é capaz de pagar.”
Lucas Monte | Fortaleza (CE)
No final do ano de 2024, o governador do Ceará, Elmano de Freitas (PT), sancionou a Lei 19.135/24 que permite a pulverização de agrotóxicos por meio de drones. A lei foi proposta, aprovada pela Assembleia Legislativa e sancionada pelo governador em tempo recorde (em menos de uma hora, da aprovação para a sanção) sem ter qualquer tipo de diálogo com as comunidades afetadas ou realização de audiências públicas.
A aprovação da lei foi recebida com aplausos por empresários que irão se beneficiar com o derramamento de veneno, e com bastante preocupação e incerteza para as comunidades que serão afetadas diretamente por esta lei. Não demorou muito para surgirem relatos de famílias afetadas pela pulverização de venenos por meio de drones, sendo o caso mais expressivo a de uma família em Quixeré/CE, que precisou deixar a sua casa, após a casa ter sido contaminada por agrotóxico classificado como extremamente perigoso pela Organização Mundial da Saúde (OMS). O telhado da residência precisou ser destruído para ser feito o processo de descontaminação.
Em resposta, diversos movimentos sociais e partidos se organizaram para constituir o Movimento “Revoga Já”, exigindo a revogação da lei aprovada por Elmano. O movimento tem realizado plebiscito popular como forma de denúncia para a população do estado. No dia 16/10 realizou caminhada até o Palácio da Abolição (sede do Governo Estadual) com uma comissão de mulheres e crianças para entregar uma carta com as reivindicações, intitulada “Carta de Hiroshima” (disponível ao final da matéria).
Nem a PM parou o movimento

A organização do “Revoga Já” não escondeu em nenhum momento seu interesse de dialogar com o Governo estadual e esperava realizar uma caminhada pacífica para entregar a carta ao governador. No entanto, o que encontraram foi a sede do governo cercada por grades e com a presença da Polícia Militar para conter a chegada do movimento. Um representante do governo do Estado conversou com o movimento e disse que poderia receber a carta, mas que não sabia quando iria entregar para o governador, então o movimento não aceitou entregar sem a garantia de que seriam, de fato, ouvidos.
Enquanto buscava-se um ponto de consenso com o representante do Governo do Estado, as falas animavam as pessoas presentes e denunciavam para a população ao redor os perigos da nova lei. Uma dessas denúncias foi feita pela agricultora Andreia (nome fictício por proteção), que relatou a contaminação do principal rio de sua região, além da presença de agrotóxicos próximo às escolas. Ela também nos relatou que sua região tem índice de câncer acima da média e, de fato, a segunda maior causa de óbitos no Litoral Leste do Ceará é em decorrência de câncer.
Por isso, as pessoas presentes na caminhada não tinham nada a temer com a presença da PM, uma vez que suas vidas já eram diariamente ameaçadas pela conivência do estado. Em assembleia rápida, decidiram romper a barreira imposta pela polícia e conseguiram passar pela barreira. Rapidamente foi estabelecida outra barricada, que deixou a população no sol quente de meio dia. Certos da primeira vitória e com o calor esquentando a pele, em menos de 20 minutos a segunda barreira foi rompida e o movimento conseguiu uma sombra para realizar almoço enquanto esperavam a decisão do governo.
Não demorou muito até aparecer o secretário de articulação política que se comprometeu a marcar audiência pública, definiu um prazo e recebeu a Carta de Hiroshima. Essa conquista mostrou que o povo organizado consegue fazer frente aos desmandos do Estado Burguês, mas é preciso avançar e conquistar mais para o nosso povo.
Luta no campo é a luta pelo socialismo
Não podemos esquecer que o Estado do Ceará, através da luta popular, foi pioneiro na legislação contra a pulverização aérea de agrotóxicos. Em 2019, foi aprovada a Lei Zé Maria do Tomé, de co-autoria de Elmano de Freitas, que proíbe a utilização de aviões para pulverização de agrotóxicos. A lei carrega o nome do agricultor e ambientalista Zé Maria do Tomé, que foi assassinado em 2010 na Chapada do Apodi após realizar diversos registros dos crimes ambientais e das consequências da pulverização área dos agrotóxicos.
O governador Elmano, agora aliado do agronegócio, parece ter “esquecido” do martírio de Zé Maria do Tomé, mas para o povo que sofre com os desmandos do agronegócio e têm suas vidas atacadas constantemente essa memória nunca será apagada e o luto nunca será apenas um substantivo, mas a conjugação do verbo que nos mantém na certeza de que somos capazes de honrar nossos camaradas e construir a sociedade socialista.
Carta de Hiroshima
Das mães e crianças envenenadas pelos agrotóxicos no Ceará
Ao Governador do estado, senhor Elmano de Freitas
Senhor governador,
Aqui estamos nós, mães e crianças de vários lugares do Ceará. É com nosso sangue que lhe dirigimos a palavra. Sangue humano que corre em nossos corpos. Sangue que faz colorir a rosa da vida, essa dádiva preciosa e sem preço, que nem o dinheiro do mundo todo é capaz de pagar.
Estamos aqui, governador, para dizer que o mesmo sangue que se transforma em leite pelo milagre da biologia, e com o qual amamentamos nossas crianças, nessas mesmas veias, através de nossos peitos, circula também o veneno dos agrotóxicos.
É difícil aceitar que estamos adoecendo com a única finalidade de engordar as contas bancárias de quem lucra com a destruição da vida. Mas o que dói mais, governador, o que nos tortura profundamente a alma dia e noite, é saber que nós, que amamos nossos filhos, transferimos para esses seres indefesos a morte matada a cada vez que os amamentamos. Nosso leite anda carregado de veneno, fato comprovado por estudos científicos!
Em pleno Outubro Rosa, mês da conscientização sobre o câncer de mama, o câncer que mais atinge mulheres no mundo todo, é extremamente revoltante saber que o senhor é cúmplice de uma lei que autoriza a pulverização de agrotóxico por drones em nosso
estado.
O senhor conhece as pesquisas que indicam que o câncer de mama se alastra com mais facilidade e é mais devastador onde há maior liberação de agrotóxicos? Saiba que os drones só pioram uma situação já bastante crítica.
O governador escuta, consegue escutar os gritos vindos das comunidades primeiramente atingidas pela lei que o senhor ajudou a criar? Clamores tão perfurantes como estes, só não ouvem os ouvidos que não querem ouvir.
O veneno que cai do céu é como uma bomba tóxica que estoura sobre nós. Ninguém consegue dormir, as dores de cabeça são constantes, o mau cheiro é insuportável. Há crianças que vomitam, idosos com crises respiratória, nossas plantações ressecam, morrem os passarinhos e as abelhas… Estão nos matando, senhor governador!
Nos perguntamos com frequência como seria se suas famílias morassem aqui, a sua e a dos 22 deputados que aprovaram essa lei cruel e desumana. Como seria se tivessem que beber da mesma água, respirar do mesmo ar, se alimentar da mesma comida?
Governador, no mês em que o Brasil celebra o Dia das Crianças, pedimos para que o senhor pense nos meninos e nas meninas mudas telepáticas de nosso estado. Pense nas crianças cegas inexatas, nas deformações em seus frágeis corpos em crescimento. Pense nas mulheres rotas alteradas. Pense nas famílias devastadas. Pense e volte atrás. Reconheça o grave erro praticado e revogue essa lei.
Não queremos ser envenenadas! Não queremos envenenar nossas crianças! Ninguém quer isso. Ninguém!!! É o que mostra o Plebiscito Popular realizado por várias organizações aqui no estado. Se duvida, suspenda imediatamente a lei e realize o senhor mesmo uma consulta oficial ao povo. Só teme a verdade quem faz da mentira cobertor.
A bomba de Hiroshima dependeu de um apertar de botão para explodir e marcar a história como um dos mais horríveis e covardes crimes já cometidos. A bomba dos drones da morte precisa de apenas uma canetada sua para ser desativada. Não titubei. Em nome de todas as crianças intoxicadas, de todas as mães, de todo ar e de todas as águas, de todos os passarinhos e abelhas, em nome de todo o povo envenenado do Ceará, faça isso agora!
Da nossa parte, não tenha dúvidas, daremos nosso sangue para mudar essa história.
Palácio da Abolição
Fortaleza, 16 de Outubro de 2025