“Quem tem mais pressa
Que arranje um carro
Pra andar ligeiro
Sem ter porque
Sem ter pra onde
Pois é, pra quê?”
(Sidney Miller, “Pois é, pra quê?”. 1968)
Maria Ferreira e Júlia Andrade
BRASIL – Os acidentes de trânsito matam 1 milhão e 200 mil pessoas por ano, segundo o Relatório Mundial sobre a Situação da Segurança Viária, da OMS. As lesões no trânsito são a primeira causa de morte entre crianças e jovens de 5 a 29 anos no mundo. Do total de mortes, 93% ocorrem em países de baixa/média renda, que concentram apenas 60% dos veículos.
No Brasil, o trânsito é uma das principais causas externas de morte e figura no Atlas da Violência ao lado de categorias como “armas de fogo”. Segundo dados do Ministério da Saúde, sinistros de transporte terrestre mataram nos últimos anos, em média, 45 mil pessoas/ano, o que representa algo como 123 mortes por dia, todos os dias do ano. Estima-se uma média de 300 mil feridos graves anualmente no Brasil, ou seja, mais de 821 pessoas que têm parte de seu corpo seriamente comprometida em sinistros de trânsito todos os dias.
Os números médios de óbitos ultrapassam, por exemplo, 30 vezes o número de mortes anuais por dengue no país (1.356 óbitos, em 2024), o número de homicídios cometidos com armas de fogo (32.749, em 2023) e se aproximam do total de mortes por homicídio, que foram 45.747, em 2023. Mesmo assim, as vítimas desses acidentes seguem invisibilizadas na agenda pública.
Apesar da dimensão da tragédia, o tema é tratado como fatalidade, um “mal natural”. O uso da palavra “acidente”, aliás, reforça a ideia de imprevisível, inevitável, sem causa aparente. O termo mais adequado é “sinistro de trânsito”, pois reconhece que essas ocorrências são previsíveis e, portanto, evitáveis. A persistência do termo “acidente” serve para esconder responsabilidades (do governo e dos grandes empresários) e ocultar suas causas: infraestrutura precária, modelo de cidade excludente, negligência estatal e a lógica da produção capitalista, um sistema que mata.
É comum vermos na mídia que os sinistros de trânsito são culpa de “falha humana”. Humanos falham, vejam só! Se cansam, têm pontos cegos e diferentes tempos de reação. Condições humanas naturais e previsíveis, aprofundadas pela precariedade da vida sob o capitalismo. Assim como a chuva não é culpada por enchentes, mas sim a ausência de planejamento urbano e sistemas de proteção, os “erros humanos” não devem isentar o Estado e os ricos empresários da responsabilidade. Mortes em vias sem calçadas ou faixas de pedestre, jornadas exaustivas com metas irreais para caminhoneiros e carreteiros e a falta de segurança em veículos populares revelam que essas tragédias são resultado de decisões políticas e econômicas, e não apenas de falhas individuais.
Há, de fundo, uma normalização cruel: quantas mortes por dia são aceitáveis para manter o modelo de mobilidade atual? Quantas vidas são sacrificáveis para que a fluidez do tráfego e a produtividade do capital não sejam interrompidas?
Os sinistros não são eventos isolados, mas expressões concretas cotidianas das contradições do modo de produção capitalista aplicadas às cidades e estradas do Brasil. São sintomas de um modelo que privilegia o capital, a circulação de mercadorias e a reprodução da força de trabalho em detrimento da vida, das necessidades e da mobilidade segura dos trabalhadores.
A mobilidade na história do Brasil
A história da mobilidade urbana brasileira reflete essa lógica. Nos anos 1930, houve uma onda de estatização/municipalização do transporte sobre trilhos, porém, na década de 1950, durante os governos de Getúlio Vargas e Juscelino Kubitschek, chegam as indústrias automobilísticas no Brasil, e com elas o incentivo do governo ao rodoviarismo e ao transporte individual.
Após 1964, a ditadura militar cumpre o papel de quebra do sistema ferroviário, desativando trens regionais e bondes urbanos em diversas cidades. Os militares aumentaram em 282% a malha rodoviária brasileira, em empreitadas como a construção da Transamazônica e outras BRs, que, além de violar territórios indígenas, marginalizaram o transporte ferroviário e hidroviário.
Nos anos 1990, com o avanço do neoliberalismo, as linhas de trens que permaneceram sofreram novo ataque. A Rede Ferroviária Federal Sociedade Anônima (RFFSA) operava trens de passageiros intermunicipais e interestaduais: em 1996, sua malha compreendia cerca de 22 mil quilômetros de linhas (73% do total), mas foi privatizada no governo FHC, passando a operar apenas na carga de mercadorias, sendo oficialmente extinta em 2007. O transporte sobre trilhos é mais eficiente, menos poluente e mais seguro, mas foi – e segue sendo – desmontado em nosso país para beneficiar o transporte individual, tornando as cidades mais violentas, excludentes, letais e submetidas ao interesse dos muito ricos.
Os riscos do transporte individual
O transporte público coletivo é sucateado e transformado em mercadoria, com horários escassos e tarifas cada vez mais altas. Com isso, milhões de trabalhadores migraram para o uso da moto, veículo mais barato, rápido – e também o mais letal. Motociclistas respondem por quase metade das mortes no trânsito brasileiro; suas mortes cresceram mais de 10 vezes nos últimos 30 anos. Quem mais morre? Jovens, negros, trabalhadores periféricos. Soma-se a isso o fato de 53,8% dos proprietários de motos no Brasil não terem habilitação adequada.
No SUS, os impactos são brutais: em 2020, 61,6% das internações por sinistros foram de motociclistas. Em hospitais, a sobrecarga é evidente – como no Regional de São José (SC), onde mais de 80% dos traumas atendidos em 2024 foram causados por sinistros com motos. Escolher a moto, nesse contexto, não é liberdade, é exposição ao risco. Fruto de uma política que nega transporte público digno e transfere para o indivíduo o peso da mobilidade, mesmo que isso custe sua vida.
Outro exemplo: a velocidade máxima nas vias não é definida pela segurança da travessia de uma criança ou idoso, mas pela lógica da produtividade. A pressa do capital impõe risco à vida. Um corpo humano pode aguentar impactos de até 30 km/h. A velocidade influencia diretamente a ocorrência e gravidade dos sinistros de trânsito. Quanto maior a velocidade, menor a margem de segurança para manejar imprevistos e maior o potencial de lesões graves ou fatais. Ao dobrar a velocidade do veículo, a energia do impacto quadruplica: uma colisão a 60 km/h é 4 vezes mais severa do que a 30 km/h. Em alta velocidade, o campo de visão se reduz, o tempo de reação e a condição de frenagem diminuem, tornando a colisão mais provável e letal. A alta velocidade é o maior fator de risco para sinistros de trânsito, seguido pelo uso de álcool e outras drogas. O terceiro fator é o uso do celular pelo motorista, que aumenta em 400% a chance de colisões. A banalização destes três comportamentos ceifa todos os dias a vida do nosso povo e deve ser combatida.
Existe saída!
Em benefício do lucro de um pequeno grupo de empresários da indústria automobilística, de distribuição e revenda de combustíveis, das construtoras e do setor rodoviário, agências internacionais estimam que o Brasil pode gastar mais de 2% do seu PIB com “acidentes”. Incluindo gastos do SUS com internações, consultas, tratamentos e reabilitação de vítimas, valores de perda de produção, custos previdenciários, perda de cargas, entre outros, pelo menos R$ 50 bilhões são investidos anualmente.
O custo da insegurança viária não abarca a incalculável dor das famílias que perdem quem amam. Por isso, a Unidade Popular pelo Socialismo defende em seu programa a reestatização das estatais privatizadas, fim dos leilões do petróleo, a revisão das concessões dos portos, aeroportos e estradas brasileiras entregues a empresas privadas e estatização de todos os meios de transporte coletivo. O direito de ir e vir não pode ser submetido ao lucro e só existe se houver o direito de chegar com vida!
Em memória de Welfesom Campos, Ana Letícia, Leandro Souza, Ademilson Miltão e de todas as vítimas desse sistema assassino, registramos esta denúncia e este compromisso: não aceitaremos que a morte dos nossos seja normalizada. Não aceitaremos que ela seja tratada como destino. Lutaremos até transformar essa realidade!
Referências:
Global Status Report on Road Safety – OMS, 2018.
Atlas da Violência – IPEA 2025.
Impactos Socioeconômicos dos Acidentes de Transporte no Brasil de 2007 a 2018 – IPEA 2020.
Custos dos Acidentes de Trânsito no Brasil – IPEA, 2025.
Ministério da Saúde. Base de dados das mortes causas externas.