O movimento Manguebeat foi muito além da música. Inspirado nos estudos e contribuições de Josué de Castro, a cena musical brasileira foi inundada de uma arte politizada, contestadora e muito atual.
Alberes Simão| Petrolina (PE)
CULTURA- No cruzamento emblemático entre os rios do Capibaribe, as pontes do Recife e os cabos elétricos das guitarras, nasceu nos anos 1990 o Manguebeat, movimento que uniu som, meio ambiente, política e identidade. Mas por trás dos tambores e dos overdrives, pulsava também um pensamento profundamente socialista e humanista — o pensamento de Josué de Castro, médico, geógrafo e militante comunista que revelou ao mundo o mapa da fome e denunciou a miséria como produto da exploração capitalista.
“Uma antena enfiada na lama, sintonizada com o mundo.” Assim Chico Science definiu o Manguebeat. E essa imagem — lama e antena — poderia muito bem sintetizar o método de Josué de Castro: compreender o local sem perder de vista o global; entender o Recife, sua fome e sua cultura, como um microcosmo dentro de uma estrutura internacional de dominação.
O Manguebeat surgiu num contexto de crise urbana e cultural, quando o Recife dos anos 1990 sofria com desemprego, exclusão e o avanço da lógica neoliberal. Os jovens artistas, vindos das periferias, dos mocambos e das zonas alagadas, reagiram com música e crítica social. A batida eletrônica misturada ao maracatu era também uma denúncia da desigualdade e uma afirmação da vida popular — outra prática estética e política que dialogava diretamente com a obra de Josué de Castro.
O pensamento de Josué de Castro e sua contribuição social
Em Geografia da Fome (1946) e Homens e Caranguejos (1967), Josué mostrou como a fome não é um fenômeno natural, mas resultado histórico da concentração da terra, da renda e do poder. Essa análise estrutural inspirou gerações de intelectuais e militantes, e encontrou eco no Manguebeat, que via na cultura popular o terreno da resistência. O som do mangue não era apenas mistura: era método. Um modo de recompor o tecido social rasgado pela lógica da exclusão.
A ponte entre Josué e o Mangue está justamente na ideia de que a cultura é também campo de luta de classes. Ambos partiram da lama — um, para denunciar a fome; outro, para transformá-la em ritmo. Ambos acreditavam que a transformação social começa pela consciência: “O primeiro passo para matar a fome é entender a fome”, dizia Josué; “A lama é o nosso chão fértil”, dizia Chico.
O movimento Manguebeat, ao introduzir o pensamento de Josué de Castro em sua pulsação estética, reconectou o Marxismo com a cultura popular — não pela teoria abstrata, mas pela vivência concreta das ruas, dos manguezais, da cidade partida. A crítica ao colonialismo cultural e à dependência econômica, tão presentes em Josué, tornaram-se beats, rimas e metáforas urbanas.
O escritor e militante do Partido Comunista Revolucionário Luiz Falcão, em sua obra As Maravilhas do Capitalismo, desmonta com ironia e contundência o discurso ideológico da burguesia. Ele escreve:
“O capitalismo é o único sistema capaz de transformar a miséria em espetáculo e o sofrimento humano em mercadoria.”
A frase sintetiza com precisão o caráter desumano do capital. Tudo o que toca, da cultura à natureza, do corpo ao afeto, é convertido em valor de troca. A pobreza, em vez de ser combatida, é transformada em produto midiático, e a solidariedade, em campanha publicitária.
Hoje, diante do avanço do capitalismo cultural e da banalização das expressões populares, revisitar esse encontro é um ato político. Rios, pontes e overdrives não são apenas paisagens recifenses: são metáforas de resistência. O rio que corta a cidade é o mesmo que alimenta o povo; a ponte é o elo entre o saber popular e a ciência crítica; o overdrive é a distorção necessária para que a voz do oprimido seja ouvida.
“Josué de Castro plantou a semente. O Manguebeat fez essa semente pulsar no corpo da cidade”.
Ao conectar ciência e arte, fome e som, luta e estética, o Manguebeat fez ecoar, em batidas eletrificadas, a velha lição marxista de Josué de Castro: enquanto houver fome, haverá luta; enquanto houver povo, haverá cultura.