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domingo, 22 de dezembro de 2024

A morte de Edilson

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Mataram meu amigo Edilson. Mas isso, para “eles”, não significou nada. Quase nada. Nunca foi nada. Tentaram me matar também. Me confundiram com ele uma vez. Sempre disseram que a gente era muito parecido. “Irmãos gêmeos”, diziam uns. Eu e Edilson tínhamos quase a mesma idade, mesma altura, mesmo tom de pele e mesmo corte de cabelo. Especialmente a cor da pele. Edilson deixou de estudar cedo. Foi trabalhar. Entregava água mineral nas casas e estabelecimentos comerciais. Prédios, condomínios. Alguns nunca deixavam ele entrar; tinham medo de que ele voltasse depois pra roubar. Era preto. Carregava pão, vendia gelo, pegava no batente de domingo a domingo. Todos os dias a gente se esbarrava no meio do caminho. Eu indo para a escola, ele entregar gelo. Eu voltando da escola, ele entregando pão, eu indo ao cursinho, ele pintando parede. Eu falava do que ele perdia na escola, ele mangando de mim por ainda insistir nos estudos. Ele vivia reclamando do emprego, dizendo que recebia pouco.

Edilson casou. Não teve festa nem despedida de solteiro. A gente comemorou. Apareceu de tarde na escola me chamando para comer uma pizza na lanchonete. Acho que essa foi a terceira vez que eu “gazeava” aula na vida. Tudo por causa dele. Não havia como dizer não para Edilson. Foi ele quem me livrou de uma surra quando um ex-namorado de uma quase namorada minha cismou de me bater na rua por ciúmes. Cercado, três caras de bicicleta, e lá aparece Edilson pra peitar os caras: “quem vai bater aí no meu irmão?”. Edilson se casou. 17 anos e já seria pai de dois filhos. Passou a se envolver com drogas e eu, “todo tabacudo”, como ele dizia, ainda indo para a escola. Um dia ele chegou lá, fim de tarde, e pagou picolé pra todo mundo. Era o herói da turma. Lembro que minha mãe não gostava muito dele. “Não quero você andando com esse daí!”.

Num 13 de outubro foram buscar ele na escola. Acharam que eu era ele. Se confundiram. Eu e Edilson, com aquela farda marrom, éramos quase a mesma pessoa. Me jogaram no chão, colocaram uma arma na minha boca, disseram um monte de coisa que eu não fiz, juro. Vi um monte de coisa passando na minha mente. Aí um deles me reconheceu, ou me estranhou. “Não é ele!”. Passei dias sem querer ir ao colégio. Dias sem sair de casa. Não costumo voltar pelo mesmo caminho que fiz. Duas semanas depois mataram o Edilson. Fiquei sabendo dois meses depois. Seus dois filhos são a cara dele. Dizem.

Mataram meu amigo Edilson. Ele nem tinha completado os 20. Mas isso não significou nada pra “eles”. Mataram Tim Lopes, Marielle Franco, Patrícia Acioli. Sumiram com o Amarildo, sequestraram, torturaram e mataram Manoel Lisboa de Moura, centenas de brasileiros e brasileiras durante a ditadura, ontem e hoje. Edilson virou só um número, uma lembrança na memória de poucos. Ligo a TV e vejo o Exército apontando metralhadora na cara das crianças. O presidente janta na casa de quem devia estar lhe investigando, tem um cara no Supremo que era advogado do PCC, mas nada consta. Nada importa. Edilson é só mais um numeral em alguma folha, em alguma porta, em alguma conta. Mas eu lembro daquele 13 de outubro: eu, com a cara no chão, com a certeza de que iria morrer, enquanto, do outro lado da rua, um carrinho de som tocava aquela música do Gilberto Gil… “O Rio de Janeiro continua lindo”.

Clovis Silva, estudante de letras da UFRPE

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