Resistência operária no mundo do futebol

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No dia 16 de junho, um importante time operário da periferia de São Paulo completou 19 anos. O Estrela Azul, como é chamado carinhosamente pela comunidade, foi fundado no Pantanal, Zona Leste da capital paulista, no ano de 1999.

Desde então, todos os domingos, sem nunca ter falhado nenhuma vez, ocorrem partidas de duas horas com cerca de 25 de jogadores, sem a presença de um juiz. A força da solidariedade e do coletivo são a alma desta resistência. Neste mundo capitalista, onde o futebol foi dominado pelos grandes monopólios midiáticos e o capital financeiro, onde tudo que diz respeito a esse esporte é decidido pelo dinheiro, os 19 anos da equipe são, sem dúvida, um grande feito.

Com a maioria do time composta por nordestinos que trabalham em fábricas e comércios da cidade, o Estrela Azul preza por alguns princípios essenciais que foram decisivos para manter o time até aqui. Primeiro, o futebol é para brincar. Assim, o Estrela Azul desde sempre joga contra ele mesmo, e atualmente, são os camisas amarelas contra os camisas azuis. O time não se inscreve em campeonato nem marca jogos contra outros times.

Segundo, o mais importante é a saúde do trabalhador. Sendo um time amador, onde todos os jogadores têm que bater cartão na segunda-feira, os jogadores não se expõem a grandes riscos, mantendo a competitividade, mas com um clima de imensa solidariedade entre todos.

Terceiro, o juiz é uma figura estranha ao futebol. Sendo o futebol um esporte coletivo e uma brincadeira, ter um indivíduo que fique arbitrando o andamento do jogo parece inaceitável ao Estrela Azul. Assim, o andamento da partida vai sendo decidido pelo bom senso de todos que estão em campo.

E, por último, o time não é propriedade de ninguém, é de todos os membros. E assim sendo, as tarefas e a sustentação material do time são divididas coletivamente. Qualquer membro pode participar de sua coordenação, que se reúne todas as segundas-feiras à noite, e reveza as tarefas de coordenação, secretaria e tesouraria. Atualmente essas tarefas são exercidas por Manoel Pereira, operário desempregado e piauiense; José Roberto, também piauiense e trabalhador terceirizado da Universidade Mackenzie; e pelo companheiro Hermínio, baiano e metalúrgico.

Todos os membros contribuem com R$ 10 por mês para que a quadra seja paga todas as semanas, a manutenção do material necessário (bolas, camisas e calções) seja garantida e o “gelol” e outros itens estejam sempre à disposição.

A existência de um time com essas características realmente se apresenta como um grande contraponto aos rumos que o esporte tomou em todo o mundo. O futebol, que é uma paixão de todos os brasileiros, está cada vez menos acessível aos operários pobres. De jogadores, quando crianças, vamos nos transformando cada dia que passa em meros expectadores dos grandes times de profissionais.

A falta de quadras e campos públicos que recebam uma manutenção decente e de interesse do poder público e do capital em democratizar o esporte, os ingressos abusivos cobrados nas bilheterias dos grandes estádios, a falta de organizações sociais fortes e comprometidas com o bem-estar e a saúde dos trabalhadores das periferias são apenas alguns dos motivos pelos quais o povo se encontra alijado da possibilidade de praticar seu esporte favorito.

Com efeito, o mundo está aí cheio de exemplos. Por ano, milionários, bancos, clubes, agentes e jogadores dividem um negócio que movimenta R$ 146 bilhões. Um jogador do Real Madrid recebe, em média, 166.180 dólares (cerca de meio milhão de reais) por semana e um do Barcelona, 155.452 dólares, segundo cálculos da consultoria especializada em salários, a Sporting Intelligence.

Com toda essa situação, fica a pergunta: como um operário, que depende de salário mínimo para viver, pode chamar de seu um esporte como o futebol? Por quais meios é possível se apropriar desse esporte para que ele realmente sirva à classe trabalhadora? A resposta não é fácil, pois o capitalismo transforma tudo à sua imagem e semelhança, inclusive o futebol.

A contradição é tamanha que recentemente os operários da Fiat, na Itália, anunciaram greve contra a contratação de Cristiano Ronaldo para o seu próprio time, o Juventus. Isso porque os patrões, que pagam um salário de fome aos trabalhadores (os verdadeiros responsáveis pela produção da riqueza), pagaram 100 milhões de euros para o Real Madrid por essa contratação.

Em nota, o sindicato dos trabalhadores reclamou: “Não é aceitável que os trabalhadores continuem a fazer enormes sacrifícios econômicos enquanto a empresa gasta milhões de euros num jogador. Eles dizem às famílias para apertarem cada vez mais o cinto e depois decidem investir tanto dinheiro num jogador. Acham isso justo? É normal uma pessoa ganhar milhões, enquanto milhares de famílias a meio do mês já quase não têm dinheiro? Somos todos empregados e esta diferença de tratamento não pode continuar. Os trabalhadores da Fiat deram uma fortuna aos patrões nas últimas três gerações, mas foram compensados com uma vida de miséria”.

O Estrela Azul vai na contramão de tudo isso. São 19 anos apostando na organização da nossa própria classe. São três gerações do bairro que já puderam e continuam podendo jogar bola toda semana e não só assistir aos jogos. Jovens negros, pobres, ex-presidiários e usuários de drogas têm todo espaço no time e isso também é um ganho real para a comunidade. Todo esse esforço acontece sem ilusão. Todos os trabalhadores ali sabem que esse sistema capitalista e os patrões não têm nada a oferecer para nós. E alguns membros do time já constroem a luta pela Revolução e pelo Socialismo, por uma sociedade em que os operários não só serão donos das fábricas, mas dos times de futebol também!

Queops Damasceno, São Paulo