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sábado, 21 de dezembro de 2024

Governo quer impor retrocessos na saúde mental

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Para compreender em que a ordem e a disciplina se relacionam à loucura é necessário voltar ao Brasil do século 19, no cenário da chegada da família real ao Brasil. A população brasileira estava em processo de consolidação e constituição de uma nação independente, e o louco passou a ser visto como “resquício da sociedade” ou “ameaça à ordem pública”. O destino da loucura passou a ser os porões das Santas Casas de Misericórdia, onde os pacientes viviam amarrados e sob condições precárias de higiene e cuidado.

Em 1830 foi instituída a ideia de hospício na sociedade, a partir da união da Sociedade de Medicina e Cirurgia. O hospício, então, passou a ser considerado não somente a principal ferramenta da recém-nascida psiquiatria, filha da medicina, que se colocou como instituição que disciplina e higieniza a sociedade; mas também como ambiente exigido a fim de enclausurar o perigo de uma sociedade “desviante”. E aqui entendia-se desvio como qualquer coisa fora do padrão social: o que hoje se entende como autismo, por exemplo, era um comportamento desviante que se encaminhava para os hospícios para receber tratamentos de choque.

Nas décadas de 1960 e 1970, a ditadura militar tinha se instaurado e uma resistência armada se formado, com um estado que instigava ordem e disciplina a partir da força e da violência, condenando todos e todas que não seguissem a linha imposta pelos militares. Assim, além de pessoas com transtornos mentais (graves ou não), presos políticos foram enviados aos hospícios por manifestarem opiniões políticas contrárias, com o argumento de que eram loucos, que não sabiam o que estavam dizendo. O que na verdade era uma forma de tentar silenciar os ideais e as denúncias de torturas que viveram. Além disso, com tratamentos sub-humanos, violentos e que nada visavam à reinserção do sujeito na sociedade.

A luta antimanicomial

Com a criação de grupos contrários a essa tortura velada, as discussões sobre o tema foram sendo urgentes. Surgiram protestos que defendiam “por uma sociedade sem manicômios” e “saúde não se vende, loucura não se prende”, frases até hoje utilizadas como lemas. Em 1987 se oficializou o dia 18 de maio como Dia Nacional da Luta Antimanicomial. Em 2001 foi criada a Lei da Reforma Psiquiátrica Brasileira (Lei 10.216/2001) e o processo de implantação e ampliação de serviços extra-hospitalares ocorreu, de forma contínua, até 2015, ainda que insuficiente. Porém, nos relatórios apresentados pelo Ministério da Saúde, a expansão dos Caps (Centro de Apoio Psicossocial) ou CERSAMs (Centro de Referência em Saúde Mental) no quadriênio de 2013-2017 foi de uma taxa vergonhosa de 1,01%. Além disso, em 2014, apenas 2,3% do orçamento da Saúde era destinado à área de saúde mental. Este ano, caiu para apenas 1%. Ou seja: o que já era deficitário, ficou ainda pior.

Desde 2018, uma nova onda vem se formando na contramão das conquistas da luta antimanicomial, e a fragiliza através de escassez de recursos para a Rede de Atenção Psicossocial (Raps), alternativa ao modelo manicomial. A proposta é a volta do hospital psiquiátrico como centro da rede (até então substituído pelos Caps ou CERSAMs). A proposta (Resolução nº 01/2018) foi apresentada ao Conselho Nacional de Políticas Sobre Drogas (Conad) pelo então ministro do Desenvolvimento Social, Osmar Terra, com aprovação sumária, sem abertura para debate. A proposta diz respeito a uma alteração primordial das políticas de saúde de álcool e outras drogas: o abandono das lógicas de redução de danos já implantadas por programas da Rede de Atenção Psicossocial (como, por exemplo, os Consultórios de Rua), ação recomendada pela Organização Mundial de Saúde (OMS), e o retorno à lógica de abstinência (que não respeita a autonomia do usuário, diretriz do SUS).

A privatização da saúde mental e o desmanche da visão humana do cuidado, repensada no Governo Temer, continua agora no Governo Bolsonaro. A Nota Técnica nº 11/2019 ainda sobre a “Nova Política de Saúde Mental”, além de desconstruir uma política de saúde mental elaborada e praticada no território e nos serviços da Raps, de maneira integral e buscando sempre considerar a autonomia e o protagonismo do sujeito em seu cuidado, indica a ampliação dos leitos em hospitais psiquiátricos e comunidades terapêuticas (inclusive dentro da Raps), incentivando assim o retorno à lógica manicomial. Além disso, é permitido ao Ministério da Saúde financiar a compra de aparelhos de eletroconvulsoterapia – que alguns profissionais defendem, ignorando e desrespeitando todo o histórico no qual esse “tratamento” foi utilizado como tortura.

Tratamento deve ser humano

Os objetivos principais da luta antimanicomial pela Reforma Psiquiátrica incluem não somente as mudanças estruturais na atenção à saúde mental no Brasil, mas também o questionamento dos estigmas que imperam sobre a loucura e a pessoa portadora de transtorno mental. Defende-se a urgência da implementação dos espaços de atenção substitutivos ao modelo manicomial que ofereçam acompanhamento e tratamento mais humanizados e que resguardem seus usuários de qualquer forma de abuso ou exploração, como ocorria antes da determinação da Lei da Reforma Psiquiátrica (Nº 10.216/2001).

As diretrizes do Sistema Único de Saúde orientam que o atendimento de saúde prestado em território nacional deve ser realizado de forma universal (todos os níveis de assistência, para todos os cidadãos), integral (considerar a saúde em todos os aspectos biopsicossociais-ambientais, e que ela seja atuada para além da lógica da cura de doenças, mas também a partir de uma lógica de prevenção); preservação da autonomia do usuário, igualdade na assistência em saúde, direito à informação e garantia da participação da comunidade nas ações de saúde.

O que os profissionais de saúde mais alinhados com a luta antimanicomial entendem é que a decisão de internação é do usuário. Se o usuário acredita que ele necessita de cuidado em tempo integral, a decisão é dele. Não do Estado. Agora vivemos a ameaça do retorno de um modelo de segregação, internação. Esse modelo não é adequado justamente porque o paciente perde referências sociais, como família, trabalho, comunidade, rotina diária, entre outras, e fica alienado em uma lógica apenas biologizante, de cura do corpo, não a mais adequada e que apresenta melhores resultados quando se fala de acompanhamento em saúde mental.

Por fim, torna-se necessário e urgente traçar novas estratégias de luta e mobilização para enfrentar este momento intenso de retrocesso dos direitos conquistados. Não se pode permitir que o Estado se isente da responsabilidade humana com seu povo, visando o lucro daqueles que enriquecem com o sofrimento do outro, e também o adoecimento mental das trabalhadoras e trabalhadores que favorece a manipulação e restrição de seus ideais. Por isso, devemos lutar por uma saúde pública, gratuita e de qualidade JÁ!

Bruna Léo e Daniella Paína (Minas Gerais) e Luiza Escardovelli (São Paulo) são psicólogas.

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