Em julho de 2023, completaram-se 60 anos do massacre ocorrido inicialmente em uma aldeia localizada no Paralelo 11 Sul – o 11º abaixo da linha do Equador, um dos mais perversos episódios na história da região amazônica brasileira, objeto de investigação parlamentar e judicial, porém sem que nenhum dos principais responsáveis fosse punido.
Alexandre Hudson | Rondônia
BRASIL – O massacre no Paralelo 11 resultou na morte de aproximadamente 3.500 indígenas pertencentes ao grupo conhecido como Cinta Larga, na década de 1960, ocorrido na área situada entre o norte do Estado de Mato Grosso e porção sul de Rondônia.
De acordo com a plataforma socioambiental Indígenas no Brasil, o termo “Cinta Larga” foi uma designação genérica criada pelos não-indígenas e adotada pela Funai devido ao costume dos grupos de usar uma larga cinta de entrecasca de árvore em volta da cintura.
Os grupos dos Cinta Larga viviam e permanecem no sudoeste da Amazônia brasileira. Com uma população bem mais numerosa há décadas, segundo informantes e fontes escritas, cada agrupamento era formado por aldeias mais ou menos próximas. Atualmente, vivem nas terras indígenas Roosevelt, Serra Morena, Aripuanã e Parque Aripuanã, todas homologadas, somando um total de 2,7 milhões de hectares.
Um grupo de assassinos, organizado para exterminar os indígenas da área, partiu da sede da empresa Arruda & Junqueira, em julho de 1963. Esses pistoleiros percorreram a mata durante meses, sendo abastecidos com munição e alimentos lançados por aviões. Durante os ataques, muitos indígenas, incluindo mulheres e crianças, foram brutalmente assassinados. Alguns desses atos foram registrados em fotografias, como o caso de uma mulher indígena pendurada pelos tornozelos e posteriormente partida ao meio.
Conforme apontou a Comissão Nacional da Verdade (CNV), as agressões contra as comunidades indígenas eram frequentes na década de 1960, visando à exploração de minérios e madeira. Os invasores realizavam deslocamentos forçados e assassinatos para permitir a exploração dessas áreas.
Além dos confrontos diretos com o uso de armas de fogo pelos invasores, mas também incluiu distribuição de alimentos envenenados, disseminação intencional de doenças, como varíola, tuberculose e gripe, bem como crimes sexuais. Registros também mencionam ataques com dinamites lançadas de aviões sobre as aldeias.
O massacre em massa dos Cinta Larga, embora perpetrado por pistoleiros, contou com o apoio de funcionários do regime militar, incluindo o diretor do Serviço de Proteção aos Índios (SPI) e um major da Aeronáutica, Luis Vinhas Neves. Ou seja, agentes do Estado em conluio com capitalistas.
O golpe fascista de 1964 intensificou as contradições do SPI. Uma das razões para o golpe foi a criação de mecanismos institucionais favoráveis à rápida acumulação de capital, como as concessões de terras indígenas para terceiros realizadas pela ditadura. Para os povos indígenas, isso significou uma intensificação da expropriação de suas terras, mais doenças, mais massacres e genocídios.
O relatório do procurador Figueiredo
A busca por Memória, Verdade e Justiça que precedeu a criação da Comissão Nacional da Verdade em geral não abordou adequadamente a situação dos povos indígenas: estes grupos originários não eram reconhecidos como vítimas da ditadura, ficaram à margem das discussões sobre políticas de reparação e, por fim, foram novamente excluídos do processo de construção de uma memória coletiva na sociedade brasileira. No entanto, esse cenário começou a mudar durante o período de atuação da Comissão Nacional da Verdade (CNV) entre 2012 e 2014.
Foi durante o funcionamento da CNV, em 2012, que veio à tona o “Relatório Figueiredo”, elaborado pelo procurador Jader de Figueiredo Correia. Este documento, produzido por uma Comissão de Inquérito estabelecida em 1967 para investigar os crimes cometidos pelos agentes do Serviço de Proteção ao Índio (SPI), foi considerado como “escândalo do século” na época de sua divulgação, em 1968, devido à gravidade das denúncias de massacres, torturas e outros abusos contra os povos indígenas.
O relatório tem sete mil páginas e está sob a custódia do Museu do Índio/Funai no Rio de Janeiro, disponível online. Ele documenta casos de tortura, assassinatos, exploração sexual e diversas formas de violência praticadas por latifundiários brasileiros, funcionários do SPI e militares durante as décadas de 1940, 1950 e 1960.
Embora o relatório final da CNV tenha reconhecido as violações dos direitos dos povos tradicionais, incluindo a recomendação, datada de 2014, para que a União pedisse desculpas publicamente pelos erros cometidos, essa medida mínima ainda não foi cumprida pelo Estado brasileiro.
O trabalho da CNV, apesar de breve e insuficiente, trouxe à tona as marcas da violência da ditadura militar sobre os povos indígenas, revelando que o Estado brasileiro foi responsável pela morte de pelo menos 8.350 indígenas, incluindo as vítimas do genocídio no Paralelo 11. É fundamental continuar a luta popular para que as recomendações da CNV sejam efetivadas e que os assassinos e torturadores respondam por seus crimes.
Matéria publicada na edição nº 287 do Jornal A Verdade.