Desde a colonização, os povos explorados e oprimidos no Brasil criaram diversas formas de resistir às tentativas das classes dominantes de expulsá-las seus territórios. Dos quilombos aos prédios nos centros urbanos, a ocupação tem sido o principal instrumento da busca por teto e terra, criando no fogo da luta um novo modo de vida verdadeiramente coletivo
Luiz Henrique Chacon | São Paulo (SP)
Hoje, falar da ocupação de terras improdutivas, imóveis abandonados e da organização dos trabalhadores pobres para lutar por casa e terra já é um assunto que rodeia os bairros e favelas das grandes cidades. Elas mesmas, em sua maioria, surgiram assim.
As ocupações também são pauta de debates acadêmicos e pesquisas que se propõem a pensar as relações sociais brasileiras, e reúnem-se até mesmo fóruns nacionais para tratar dessa questão.
Mesmo com tanto acúmulo sobre o tema, ainda falta clareza do papel político e social que cumpriram, cumprem e podem cumprir as ocupações em nosso país. Isso acontece porque as conclusões tiradas dessas discussões ainda tendem a ser muito influenciadas pela ideologia burguesa, que não tem nenhum compromisso com a transformação da sociedade nem com a melhora da vida da classe trabalhadora, que vive hoje amontoada e pagando alugueis altíssimos.
Por isso, precisamos responder a algumas questões sobre as ocupações.
Ocupação não é invasão
A primeira pergunta que precisamos responder é: o que é uma ocupação? Para começo de conversa, ao falarmos de ocupação, temos sempre que esclarecer de que se trata de um espaço que estava “vazio” e que passa a ter uma função, seja ele um terreno baldio ou um prédio abandonado. Locais como esse existem aos montes no Brasil, e hoje servem apenas para o acúmulo de lixo, a transmissão de doenças e o enriquecimento de grandes proprietários por meio da especulação imobiliária.
Portanto, quando dizemos “ocupação”, estamos falando sobre a expansão das periferias das grandes cidades e a retomada dos centros para a moradia popular. Ao contrário do que diz a burguesia, a ocupação é diferente da “invasão”, que é uma forma de violência que remove pela força quem estava ocupando aquele espaço.
Um exemplo de invasão é o que acontece há décadas na Palestina, onde os sionistas de Israel, na sua sede pelo lucro, massacram o povo palestino e transformam o que antes eram lares, escolas, hospitais e campos de plantio em cenários de guerra e fome. São lugares que viram verdadeiros campos de concentração, que depois são utilizados para extrair todos os recursos naturais e transferir toda a riqueza daquela terra para os bolsos do imperialismo estadunidense e europeu.
Dito isso, é importante deixar claro que no Brasil, hoje, temos 7,9 milhões de famílias brasileiras compondo o chamado “déficit habitacional”. Isso significa que essas famílias gastam mais de 30% do que recebem com o pagamento de seu aluguel ou moram em condições precárias. Nesse mesmo país, há 18 milhões de imóveis vazios que multiplicam os lucros dos ricos especuladores.
Por ser impossível dormir com essa contradição, devemos também conhecer mais de nossa história, para entendermos como, em um país com uma imensidão de terras férteis, é possível haver tantos espaços “vazios” sendo ocupados e, ao mesmo tempo, tantas invasões violentas que expulsam e exterminam aqueles que já estavam naqueles espaços.
Quem invade são os ricos, quem ocupa são os trabalhadores
Outra pergunta que precisa ser respondida é: desde quando se ocupa e se invade no Brasil?
Desde 1500, nosso país é marcado pelas invasões, cujas formas violentas se perpetuam até os dias de hoje. A primeira invasão das terras indígenas pelos colonizadores foi aprofundada nos séculos seguintes pelos bandeirantes e consolidada, no século XX, pelos governos capitalistas e ditaduras fascistas. Com os contínuos roubos de terras, chegamos a 2010 com 85% da população brasileira concentrada nas cidades. Essas invasões sempre tiveram o incentivo do Estado.
Hoje, esse mesmo incentivo é dado para o agronegócio e as mineradoras grilarem terras na fronteira agrícola e na Amazônia. Também é dado para as grandes empreiteiras, junto de seus cães de guardas nas polícias, despejarem bairros inteiros nas cidades para construir seus palácios. A isso chamamos invasão, pois expulsam as pessoas para garantir os interesses da burguesia.
Dessa forma, vemos que as invasões têm sido uma forma da burguesia travar a luta de classes. Por outro lado, os trabalhadores expulsos de suas terras fizeram e fazem resistência às invasões: isso se expressa em uma diversidade imensa de formas de ocupação. Os quilombos, os bairros periféricos e os prédios ocupados nos centros urbanos são alguns exemplos. Ao longo dos séculos, o povo pobre vem criando maneiras de lutar pelo direito de viver com dignidade, criar suas famílias, se alimentar e trabalhar. Ele ocupa para morar e produzir.
Por isso, não podemos permitir que o debate na sociedade se reduza a ocupar ser correto ou não, como querem os ricos. Já havia ocupações no Brasil muito antes da atual constituição burguesa dizer que é um direito do povo ter um teto sobre sua cabeça. Mais do que isso, enquanto for a burguesia quem produz as cidades e dita as relações sociais no campo, sempre haverá ocupação e resistência, já que ela é uma expressão da luta de classes.
Ocupar para resistir
Agora, nos interessa responder a outra pergunta: ocupar como e para quê?
A ocupação é uma ferramenta da classe trabalhadora que pode cumprir vários papéis, e que pode inclusive degenerar e servir como parte da dominação burguesa sobre a nossa classe. Vejamos: o principal papel que a ocupação cumpre, para quem a constroi, é ser sua moradia. Mas que moradia é esta?
Em geral, morar numa ocupação é morar precariamente, às margens da sociedade, estigmatizado pela mídia e constantemente oprimido pelo Estado. Sempre com difícil acesso ao básico como água, coleta de lixo, eletricidade, creches, emprego, transporte, etc. Isso quando não consideramos que algumas ocupações sequer são uma moradia, contando apenas com barracos e algumas estruturas coletivas, onde os ocupantes não se estabelecem, mas pressionam para conseguir, por meio da luta, um lugar mais estruturado para viver.
Se tratarmos as ocupações apenas como um local de moradia, criaremos uma lógica de “propriedade privada do seu barraco”, reproduzindo uma lógica burguesa já denunciada por Engels em seu livro Sobre a questão da moradia na Inglaterra do século XIX, mas que também imperou na formação das periferias brasileiras. Nesse cenário, cedo ou tarde, fenômenos como o pagamento de aluguel, a violência e a criminalidade acabam se tornando comuns e, com o tempo, a perspectiva de organização popular se perde. Essa forma de ocupação pouco se diferencia das demais formas de moradia no capitalismo, mas é mais marginalizada e oprimida pela burguesia.
Logo, é importante que tratemos das ocupações pelo que realmente podem ser: territórios de poder popular, como os quilombos. Muito além de teto para morar, os espaços quilombolas desenvolviam a partir de si novas formas de organizar a sociedade em aspectos como relações produtivas, a direção política e militar e as relações de gênero, sempre a partir de outros valores morais e de coletividade.
Quando uma ocupação é uma propriedade coletiva, novas relações sociais passam a reger a convivência entre vizinhos e também surgem novas maneiras de lidar com as inúmeras tarefas que decorrem de construir um espaço coletivo. Ao mesmo tempo, avançar na luta se torna uma obrigação. As assembleias tomam o lugar da decisão individual, os mutirões de solidariedade erguem e reformam as casas e tarefas como a arrecadação de finanças e a mobilização de manifestações para garantir a conquista da moradia definitiva se tornam responsabilidade de todas as famílias.
Por outro lado, quando freamos o movimento da ocupação ou nos afastamos da perspectiva da luta, a consciência coletiva regride e essas novas relações vão se perdendo.
Ocupar abre o horizonte do socialismo
Assim, chegamos à última pergunta: como podemos manter essa perspectiva revolucionária nas ocupações?
A verdade é que a ocupação não existe sem as famílias que a constroem. Por isso, é sobre essas pessoas que devemos depositar nossa confiança – na sua disposição de luta, capacidade de direção coletiva e de formação política.
É justamente quando vamos para a luta e construímos novas ocupações que podemos nos enxergar enquanto sujeitos transformadores da realidade. É quando nossa consciência avança mais rapidamente e de uma maneira que cimenta em nós muitas das convicções que ganhamos na luta, mudando para sempre nossa experiência de vida e, portanto, garantindo a mobilização necessária para enfrentarmos a força da burguesia com a força do povo organizado.
É em meio ao enfrentamento com as forças de repressão que passamos a ter a certeza de que, em um país com tanta terra sem gente e tanta gente sem terra e teto, ocupar é um direito. É em meio às dificuldades dos primeiros dias, quando os barracos são precários e a cozinha é coletiva, que podemos viver a solidariedade e perceber que ela é uma qualidade que só a classe trabalhadora tem. Perceber também que os mesmos braços que carregam os materiais e cozinham, são capazes de construir todo um mundo novo, verdadeiramente coletivo, como são as ocupações.
Dessa forma, passamos a enxergar com clareza as novas forças que Lênin apontava no seio da classe. Assim, todas as imensas tarefas que temos pela frente se tornam coletivas e muito mais leves. Só por esse caminho podemos garantir o autofinanciamento da ocupação e a ampliação de seus recursos e apoios externos. Garantir também a contínua formação política, que permite a todos os trabalhadores ocupantes entenderem a ocupação como uma forma de vida socialista, para que sejam também os maiores defensores dessa forma de luta e de perspectiva de sociedade.
Assim, pela experiência prática, os trabalhadores poderão conhecer um embrião do socialismo, que passarão a defender como seu sistema.