Cinquenta anos após a Revolução dos Cravos, Portugal vê o avanço do fascismo e o aprofundamento das desigualdades sociais.
Marcelo Gaspar | Portugal
LUTA POPULAR – Duas manifestações tomaram as ruas de Portugal no final de setembro. A primeira ocorreu em todo o país com um grito de clamor por um direito fundamental, a habitação. A segunda, aconteceu somente na capital, Lisboa, e trouxe a voz do ódio e preconceito da extrema-direita europeia numa manifestação anti-imigração.
Cinquenta anos depois do fim das guerras contra as ex-colônias africanas que culminou na Revolução dos cravos e o fim da ditadura de Salazar, Portugal encara um retrocesso civilizatório com quase um terço do seu parlamento ocupado pela extrema-direita. Nas redes, a direita culpa os estrangeiros pelas falhas e problemas que o país já sofre por tempos e que pioraram com o descaso e a austeridade que a social-democracia – tanto a esquerda quanto a direita – aplicou nas últimas décadas.
No sábado, 28 de setembro, diversos movimentos sociais como Porta a Porta, Casa para Viver junto da Unidade Popular tomaram as ruas das principais cidades portuguesas reivindicando melhores condições de moradia. Esse direito, afeta transversalmente toda a sociedade, independente de idade ou nacionalidade.
A liberdade, tão aclamada pelos liberais, só se vale ao mercado, que pode especular, despejar e praticar qualquer valor de aluguel, independente se 70% dos trabalhadores em Portugal recebem menos de mil euros por mês. Chegando ao absurdo de 17m², serem alugados a quase 700€ em Lisboa. Os governos, tanto do partido socialista (PS) quanto o partido social democrata (PSD) falharam miseravelmente em resolver os problemas quando não, contribuindo ainda mais para precarizar a situação e ajudar a especulação e os aumentos dos aluguéis.
A principal falha é a falta de limites aos valores aplicados, sejam na venda das casas como nas rendas. A desculpa é sempre a mesma, o Estado não deve intervir no mercado. Contudo, com a criação dos vistos Gold, que agora levam o nome de investimento solidário, que é basicamente uma venda conjunta de casas, acima de 350 mil euros, com o visto de residência e os subsídios e incentivos aos nômades digitais, aqueles que recebem mais de cinco mil euros, o Estado não só intervém, como privilegia as classes mais ricas, que vendem e alugam suas casas em preços exorbitantes para estrangeiros escandinavos, chineses, ingleses, magnatas do petróleo, big-techs e até famosos como a Madonna.
Já a medida para ajudar o trabalhador, é um subsídio para rendas “acessíveis”, entretanto, sem os limites de valor por m², o que acontece é que as rendas voltam a subir, adequando-se ao subsídio. Ou seja, nada muda, só o senhorio que lucra. Além disso, todo esse cenário cria situações absurdas como, por exemplo, dez pessoas – geralmente imigrantes da Índia e Bangladesh – dividindo espaços de 50m², pagando 250€ cada, dormindo no chão. Sem contar os idosos, portugueses, despejados com poucos meses de aviso prévio das casas que viveram praticamente a vida toda para que o senhorio pudesse atualizar contratos feitos antes de 1990, que ainda são protegidos por lei.
A disputa de narrativas e a história decolonial
A situação da habitação reflete a política neoliberal fascista do bom e do mal imigrante, que é materializada na manifestação xenófoba anti-imigração de domingo, 29 de setembro, organizada pelo partido de extrema-direita Chega. Inclusive, proposta inicialmente para ocorrer no dia 21 de setembro, mesmo dia da 1° Marcha do Centenário d Cabral. – Não o Cabral que invadiu o Brasil, mas Amílcar Cabral, grande revolucionário marxista-leninista. – E não foi coincidência a escolha desse dia. O partido Chega e o 1143, grupo neonazista cujo líder é o assassino condenado Mario Machado, são aliados e defensores da ditadura Salazaristas.
Ambos veem em Amílcar Cabral, guineense fundador do Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC), um rival a ser desmoralizado, pois é um herói para aqueles considerados cidadãos de segunda classe. O movimento negro em Portugal cresce e faz aquilo que os povos originários e quilombolas buscam fazer no Brasil, revitalizar a história apagada.
A revolução dos cravos, movimento que libertou Portugal da ditadura mais longa da Europa (1926-1975), utiliza-se do slogan de uma revolução que não precisou disparar um tiro. Fato que faz parte da narrativa mitológica portuguesa, pois, além dos poucos tiros que foram dados em muros naquele dia, muitos outros foram disparados ao longo de anos para reprimir as lutas de libertação nacional das ex-colônias africanas.
Os capitães portugueses só se revoltaram contra seus generais porque já não queriam morrer em África, pois sabiam que os africanos estavam dispostos a morrer pela sua independência. Amílcar Cabral, por exemplo, foi assassinado por agentes portugueses em 1973, um ano antes da independência de sua terra natal. Esse sim, um grande herói de abril.
O “bom” e o “mal” imigrante
Reflexo mais recente dessa disputa, é o espantalho do imigrante violento criado pela extrema-direita internacional, André Ventura e seus seguidores utilizam das ferramentas e táticas já conhecidas para propagar fake News e criam um estereótipo das minorias que lhe incomodam mais. No caso, ciganos, árabes e imigrantes do subcontinente indiano. Brasileiros, junto com os países africanos de língua oficial portuguesa (PALOP) e o Timor-leste, são colocados na categoria de “bom imigrante”, já que falamos a mesma língua e, em alguns casos, podemos votar. – O que não nos isenta do racismo e xenofobia.
Um ponto importante a ser levantado, é que uma parcela desses “bons” imigrantes votam na extrema direita, como vimos numa das entrevistadas na manifestação anti-imigração, a advogada brasileira, que logo a frente de outra pessoa que segurava a toalha de Bolsonaro, explicou que a manifestação não era contra imigrantes, mas pela segurança. Essa tentativa de colar imigração com violência já foi exaustivamente provada como mentira, a verdade é ao contrário.
Cidades como Odemira, que possuem quase metade dos habitantes imigrantes, tem o índice de crime por habitante menor que Lisboa. Na cidade do Porto de 2009 a 2019, de acordo com os dados da Direção-Geral da Política da Justiça e Estimativas da população Residente do INE o número de estrangeiros que ali residiam passou de 8809 para 14.558, quase o dobro, já os crimes, desceram de 17.383 para 15.422 registrados.
Mesmo com esses números, o pânico moral instalado fez com que a violência contra imigrante, essa sim, aumentasse. No porto, encapuzados armados com bastões e tacos de baseball agrediram cerca de 15 trabalhadores imigrantes (de Bangladesh, Venezuela, Argélia e Brasil), tanto nas ruas quanto nas suas casas. Argelinos tiveram a sua casa invadida e alguns chegaram a se jogar pela janela para não serem espancados e esfaqueados.
Dois outros tristes exemplos, são dos brasileiros, Kadu e Carlos, ambos foram obrigados a seguir o dizer xenófobo “Volta para tua Terra”, e voltaram, mas em caixões. As notícias pouco falaram sobre eles, pois não contribuía para a imagem do imigrante violento. Kadu, 21 anos, morreu no fim do verão, protegendo duas portuguesas de sofrerem assédio no restaurante em que ele trabalhava. Ele morreu esfaqueado enquanto esperava um Uber para voltar para casa.
Carlos Eduardo, 28 anos, morreu nas queimadas que costumam dominar Portugal nessa época, hoje agravada pelas mudanças climáticas. Carlos, morreu protegendo o equipamento da empresa em que trabalhava a pedido do seu patrão e não recebeu nenhuma medalha dos liberais defensores da propriedade privada. Ambos jovens imigrantes negros que foram ao contrário do lugar que a sociedade lhes reserva e pagaram com suas vidas, que não serão esquecidas.
A extrema-direita veem se apoderando de Portugal enquanto a classe média portuguesa, alienada e contaminada pela desinformação, enxerga nos imigrantes um “problema” a ser resolvido, seja pelo espantalho da violência ou o clássico “estão roubando nossos empregos” ou pela falta e aumento de preço de casas. Enquanto isso, os imigrantes é que estão combatendo os fascistas. É revoltante ver que trabalhadores além de viverem na precariedade de contratos numa escala 6×1, tenham que lutar por casa, direito e contra a extrema-direita em um país que nem os considera cidadãos.
Ninguém diz que é fácil fazer frente ao fascismo e descontruir espantalhos, nós sabemos como é ser invadido, ter uma religião, uma língua e uma cultura enfiada goela abaixo por meio de violência e estupro. Mas sabemos também que temos todas as ferramentas para fazer e vencer essa luta por moradia, por segurança e por reconhecimento. Para cada despejo, serão mil ocupações. Para cada gota de sangue imigrante no chão, mil punhos surgiram. Como dizem nossos irmãos “Nu sta djuntu nu sta fort!” (Estamos juntos, estamos fortes. Em tradução literal do crioulo haitiano)