A Associação das Entidades Carnavalescas de Porto Alegre e do Rio Grande do Sul (Aecpars) é uma entidade que congrega escolas de samba e tribos carnavalescas da capital gaúcha e sua Região Metropolitana. É responsável, juntamente com a Prefeitura de Porto Alegre, pela organização do carnaval da capital do Rio Grande do Sul. Fundada em 9 de fevereiro de 1960, tem um total de 23 escolas de samba e duas tribos carnavalescas. Em entrevista a A Verdade, os diretores da entidade falam sobre a luta dos negros gaúchos através do samba e também sobre a organização do carnaval de 2013.
A Verdade – O Sul é a região de maior população branca do país. Como é ser negro e fazer samba aqui?
Vitor Hugo Amaro (presidente da Aecpars) – Realmente existe aqui uma predominância étnica branca. Mais de 70% da população é branca. No entanto, a comunidade negra é muito forte, e há uma discriminação muito grande. Aos olhos de todo o País, o negro é invisível no Rio Grande do Sul, assim como parece que aqui também não há carnaval. Se você vai a outra parte do País, as pessoas demoram a acreditar que você é gaúcho. E o Estado por diversas vezes ajuda a cumprir esse papel discriminatório. O negro foi retirado da cidade. Eu falo do espaço físico mesmo. A própria sede da Aecpars é um exemplo disso. Nós estamos aqui [Avenida Ipiranga, 311], nesta região central, de teimosos que somos. Esta sede passou três anos fechada porque a vizinhança não queria que fizéssemos samba aqui, num espaço cultural e histórico conquistado ao longo do tempo. Colocaram-nos lá no extremo norte da cidade, lá no Porto Seco, onde fica o Sambódromo. Agora voltamos, porque achamos que é melhor retomar o que é nosso. Nós temos a noção de que as escolas de samba são quilombos urbanos. São redutos, centros de referência da cultura negra.
A Verdade – E o samba, no Rio Grande do Sul, difere muito do restante do País?
Érico Leoti (vice-presidente) – Começou no início do século passado, acompanhando o início dessa manifestação no Brasil, como um todo. O carnaval era uma manifestação que saía dos salões (aos quais os negros e pobres não tinham acesso) e tomava as ruas. Só então passou a ter a presença majoritária do negro, que sofria preconceitos, por causa da formação característica do povo gaúcho, de grande ascendência alemã e italiana. Uma característica única do Rio Grande do Sul são as tribos carnavalescas. Essas tribos funcionavam como escolas de samba, mas em seus desfiles o temário era totalmente indígena. Eram 13 tribos, mas devido à influência do “carnaval como espetáculo” do Rio de Janeiro, hoje só existem duas. A gente diz que o carnaval é uma representação teatral a céu aberto. E, aquiem Porto Alegre, tudo isso começou com representações indígenas.
A Verdade – Notamos em todos vocês uma atitude militante. Por quê?
Chico Correa (assessor de Relações Públicas) – O carnaval forma uma militância social e de base desde o início, pela força da liderança. E aquiem Porto Alegre, apesar de termos sido retirados da cidade praticamente, o carnaval, por servir de militância, de acesso à base das pessoas no seio da comunidade, mesmo fora do Centro da cidade, apresentou uma evolução fantástica. E a tendência é que esse crescimento seja contínuo, contrariando uma máxima que a grande mídia impõe e passa para a opinião pública, de que o carnaval é apenas festa. Quando dizemos que as quadras de samba são quilombos urbanos, é porque ali existe uma resistência cultural, política e religiosa. A origem do carnaval está ligada aos nossos ascendentes africanos. Agora, em junho, já estamos trabalhando no carnaval de 2013. É emprego e renda o ano todo. O grande ganho da militância do carnaval é o fortalecimento da cidadania.
A Verdade – Vocês estão se organizando para que o tema do próximo carnaval seja Cuba. Como surgiu essa ideia?
Alan Silva (Relações Institucionais) – Aqui, no carnaval, nós buscamos conquistar espaço o tempo todo. Pensando nisso, surgiu uma ideia que poderíamos vincular à nossa origem africana. A ideia começou a vingar por aí. A gente pensou em povos que têm majoritariamente negros na sua população, na África, em países de língua portuguesa… depois vindo, se chegou à América Latina. Pensamos que na América Latina o negro é invisível, no âmbito cultural, político e econômico. Quando o sequestrador chegava à África, nas tribos, para levar os negros para outros continentes, separava ao meio cada tribo e suas lideranças, indo uma para um local e outra para outro, porque elas, juntas, seriam um problema grande para o dominador. E, algumas vezes, metade ia para Cuba e outra para o Brasil. Tanto é que, sob o ponto de vista cultural, há nuances de igualdade do povo cubano com o povo brasileiro e, especialmente, duas questões que a gente tem muito presentes: o povo cubano é um povo bondoso, honesto, cumpridor, e sua religiosidade é a mesma do nosso povo. Todos nós somos de estrato operário, obrigatoriamente, pela nossa história, sem direito à propriedade, sem direito ao voto durante uma longa parte da História do Brasil e da América por inteiro. Tentaram tirar nossa dignidade o tempo todo, e o carnaval é um foco de resistência do povo negro. Daí nós tentamos buscar elementos para vincular temas a Cuba. Nós, principalmente, sofremos as chagas do capitalismo, que o povo cubano sofreu e ainda sofre em nível mundial. E mesmo assim a medicina mais avançada, todo mundo sabe, é a cubana. E aqui, quando vemos um médico negro nos hospitais de Porto Alegre…? Nossa medicina é 100 anos mais atrasada que a de Cuba. Nos Jogos Olímpicos, mais um reflexo de um povo avançado, aquela ilhazinha que se destaca diante de continentes, cheia de medalhas.
Érico Leoti – A ideia também é fazer do carnaval um instrumento de informação. Mostrando povos em desenvolvimento mundo afora para um segmento da população que fica alijado do conhecimento, e aproveitando essa característica do carnaval, em passar informações para a população em forma de espetáculo com parte visual, musical e de dança. A ideia é que a Aecpars consiga parceria junto ao governo do Estado, que é um governo próximo de Cuba. No Rio de Janeiro, no ano 2000, por causa dos 500 anos do Descobrimento, o governo investiu pesado no carnaval e o tema conseguiu uma grande visibilidade nacional. Aqui, a partir de um incentivo dado pelo governo e prefeitura, as escolas falaram sobre os Sete Povos das Missões. Eram sete escolas falando dos sete povos, uma parte da história do Rio Grande do Sul que é pouco difundida. Há que observar também que o carnaval atua nas camadas carentes da população. Hoje, o projeto que estamos apresentando tem como tema Cuba. Amanhã pode ser sobre outros povos.
Queops Damasceno e Rafael Vieira Pires, Porto Alegre