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terça-feira, 7 de outubro de 2025

“Fomentar o cinema nacional independente também é questão de soberania”, defende Diretor da API

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Em meio à crescente desigualdade entre o cinema nacional independente e as grandes plataformas de streaming, Tiago de Aragão, cineasta e diretor da Associação de Produtoras Independentes do Audiovisual Brasileiro (API), aponta os desafios do setor e a necessidade urgente de regulamentações mais robustas para garantir a continuidade e a democratização do audiovisual brasileiro. 

Leo Ribeiro | Brasília

Tiago de Aragão é cineasta e produtor audiovisual. Atualmente ocupa a cadeira da região Centro-Oeste na direção nacional da Associação de Produtoras Independentes do Audiovisual Brasileiro (API), atuando na elaboração de políticas públicas junto ao Governo Federal para a proteção e o fomento do cinema nacional independente, como o Projeto de Lei nº 2331/2022, que busca regular as plataformas de streaming e vídeo sob demanda (VOD).

Entre um compromisso e outro da campanha de divulgação de seu mais novo documentário, “A Câmara”, sobre a rotina dos bastidores do legislativo federal, Tiago concedeu a entrevista abaixo para o Jornal A Verdade.

A Verdade – Na posição de produtor e cineasta, como você sente o impacto da crescente desigualdade entre o audiovisual independente e os grandes estúdios e plataformas de streaming? E como isso vem se traduzindo na sua prática política?

Tiago de Aragão – Bom, é daí que parte a nossa luta sobre a regulação dos streamings. Desde fevereiro de 2024, eu sou um dos diretores da API. No Centro-Oeste somos eu e o Gustavo Amora. Nós, por estarmos em Brasília e termos essa afinidade com o tema, ficamos incumbidos de tomar a frente das articulações sobre a pauta do PL 2331/22.

Eu sinto que eu faço parte de uma geração de realizadores e de produtoras que passaram por um momento um pouco mais aquecido, do início dos anos 2010, em que surgiram muitos recursos públicos de fomento, e vimos isso se esvair de repente, com o Golpe de 2016. A partir daí, o Fundo Setorial do Audiovisual (FSA) começou a sofrer uma série de ataques. É nessa conjuntura que fundamos a API, lá em 2018, quando já apontávamos como uma pauta importante a necessidade de algum esforço regulatório para frear essa boiada dos streamings. Na época, o Governo Temer atuou, justamente, na contramão disso, facilitando as grandes plataformas, principalmente estrangeiras, a criarem uma hegemonia no audiovisual brasileiro.

Ainda hoje, o Congresso Nacional ainda se mostra um ambiente hostil para firmar essa luta. Alguns sindicatos maiores têm, de fato, nos dado um apoio muito significativo, mas essa luta tocada por associações como a API, salvo poucas exceções, acaba sendo voluntária. Do outro lado, as Big Techs, donas das plataformas de streaming, contratam escritórios de lobby com profissionais muito qualificados e recursos de sobra, ao ponto de conseguirem montar no Congresso a Bancada das Big Techs, que é gigantesca.

Um dos elementos da API que mais chama a atenção é a Direção Colegiada, que trás equidade para as regiões. Isso dialoga com os editais de arranjos regionais do FSA. Como o cinema nacional independente tem se organizado para descentralizar as suas produções?

Esse é um tópico muito caro para a API. Quando se fala de descentralização, tratamos de um fenômeno que corre em dois sentidos. Tem esse sentido da regionalidade, com produtoras associadas do Acre, de Alagoas, do Mato Grosso, conseguindo participar dos debates políticos do setor e distribuir obras que vêm ganhando cada vez mais relevância. Mas tem um outro sentido, quando falamos, por exemplo, de pequenas produtoras do RJ e de SP que já não têm acesso aos recursos públicos num jogo cada vez mais concentrado pelos tubarões do cinema nacional. A API representa os interesses desses dois perfis de pequenas produtoras. Nesse sentido, é uma recompensa muito grande quando a produção independente de uma associada ganha o mundo, como a gente tem acompanhado com “O Último Azul”, do Gabriel Mascaro, premiado nesta edição do Festival de Berlim, e que é da Desvia Filmes. A Plano B, que é do Mato Grosso, é uma produtora “APIana” e acabou de vencer o Festival de Gramado.

Por mais que sejamos uma associação nacional, essa estrutura de direção coletiva nos permite atuar com maior proximidade às diferentes realidades regionais e políticas do audiovisual brasileiro. Por vezes, nossos problemas são mais localizados. Dependendo da situação, todos nós voltamos nossos esforços para proteger o cinema de determinada região. A nossa diretora no Sul, Ane Siderman, teve uma atuação muito relevante na recuperação do setor audiovisual no processo das enchentes do Rio Grande do Sul, em 2024. Naquele momento, toda a API se mobilizou para apoiar a Ane na busca de soluções. Isso é a base da nossa atuação…Digamos, do espírito da associação.

Então você interpreta que ter filmes premiados internacionalmente, a exemplo de “O Último Azul”, ajuda o audiovisual brasileiro a se tornar mais democrático? Ou esse impulso democrático no setor ainda dependerá fortemente de regulamentações vindas do Congresso ou do Ministério da Cultura?

Existe o cinema nacional e o cinema nacional independente. É preciso fazer essa diferenciação antes de responder a sua pergunta. Quem tem a autoria e os direitos patrimoniais dos filmes independentes são as produtoras. Essa relação jurídica se torna mais complexa, por exemplo, quando vai se produzir um filme ou uma série para a Netflix, ou outra plataforma de streaming estrangeira.

Temos certeza de que uma produção independente brasileira gera um impacto socioeconômico local permanente. Se tem uma garantia de que essas obras vão continuar circulando, que elas são um retrato do seu tempo e de seu povo. Ao contrário, digamos, de uma produção brasileira da Disney. Se ela decide sair do Brasil, o filme vai embora junto. Esse modelo econômico das plataformas levam as produtoras a renunciarem à própria obra, elas se tornam meras prestadoras de serviço.

Eu enxergo da seguinte forma. Não dá para desmerecer a conquista do Óscar de “Ainda Estou Aqui”. Mas eu também não sei até onde um Original Globoplay ganhar o Óscar se reflete na democratização do audiovisual brasileiro. O que em si não apresenta nenhum problema, mas é um salto lógico muito longo. No tênis brasileiro, tivemos o fenômeno do Guga Kuerten, mas que não foi acompanhado de um conjunto de políticas públicas e investimentos na base para que esse fenômeno rendesse frutos a longo prazo. É preciso não descuidar do cinema brasileiro desse jeito, de nos contentarmos a admirar uma estrela cadente.

Nada substitui um investimento centralizado e consolidado, que quando você investiga direitinho, é justamente o que leva um filme brasileiro a chegar em Cannes, Berlim, ou no Óscar. Um Gabriel Mascaro ser premiado em Berlim eleva ele como uma novidade para a maior parte da sociedade, mas antes disso temos o Mascaro jovem diretor, há mais de 10 anos atrás, iniciando uma trajetória muito bonita com seus primeiros filmes, e tendo o mérito e a sorte de ter a gente certa acreditando e investindo nele. Esse tipo de artista precisa ser incentivado com políticas públicas cada vez mais sólidas.

Agora, estamos nos encaminhando para o fim de 2025 e ainda estamos esperando cair os pagamentos referentes a editais de 2024. Com isso, cria-se um clima de imprevisibilidade por todo o setor, isso tira muitas produções de circulação. O MinC (Ministério da Cultura) ocupa cadeiras importantes no Conselho Gestor do FSA e no Conselho Superior de Cinema. Na prática, ele só precisava cumprir o dever de dar ritmo aos investimentos, chamando mais reuniões, organizando o trabalho para que as devidas decisões sejam tomadas e os recursos já empenhados sejam liberados. Nesse sentido, o MinC deixa a desejar.

Às vezes, o MinC promove o cinema brasileiro muito mais com declarações, mas não se debruça numa questão central que é a quantidade de salas muito reduzida. É preciso gestores que pensem de maneira sistêmica, responsável e longeva. Como é que a gente pode ser o país do cinema se não consegue se ver no cinema? Nem precisamos olhar longe para aprender com bons exemplos. Criaram, na Argentina, uma rede pública de cinemas em diversas cidades onde só exibem filmes argentinos. É um exemplo de política pública que democratizou o cinema deles para todas as partes envolvidas.

A luta pelo fim da jornada de trabalho 6×1 tem despertado a consciência de trabalhadores de diversas categorias. O início dessa luta coincidiu com as greves de atores e roteiristas nos EUA. Esses eventos têm ecoado numa maior organização dos trabalhadores do audiovisual brasileiro?

Essa é uma questão muito complexa, acredito que não seria a pessoa mais capaz para responder isso. O fato é que a demanda dos trabalhadores, em geral os CLTs, pelo fim da jornada 6×1, saiu da bolha e trouxe muita reflexão nos sets de longas-metragens. Acabava que era muito comum trabalhar numa jornada 6×1 nesses projetos maiores. Aos poucos a regra vem se tornando a jornada 5×2. Mas é uma luta que está longe de ser resolvida, porque não se diminuíram as horas trabalhadas por semana.

No cinema, eu acho que essas questões vão ser resolvidas de uma maneira diferente, em que a regra é o trabalhador firmar um contrato temporário de trabalho. Na maioria das vezes, as filmagens de um filme duram de 6 a 8 semanas. Isso na perspectiva de produtoras de pequeno porte. A API tem buscado se orientar com o MEMP (Ministério do Empreendedorismo, da Microempresa e da Empresa de Pequeno Porte) e o Ministério do Trabalho, mas ainda não conseguimos iniciar um diálogo efetivo. O que é preocupante, porque as novas regulações acabam só empurrando cada vez mais trabalhadores do nosso setor para a pejotização. As agências de fomento do cinema, sejam os fomentos estaduais ou fomento nacional, às vezes te obrigam a ter um tipo de prestação de contas específico que não permite romper com esse padrão.

No papel, temos mais 9 mil produtoras, nacionalmente, mas aí vem o questionamento. Quantas dessas realmente produzem materiais originais e quantas são unicamente prestadoras de serviço, sobrevivendo a partir desses contratos temporários de produções maiores? É um problema muito grande e que não vai se resolver enquanto não formos ouvidos pelo governo.

A lógica dos cinemas de shopping é priorizar o acúmulo de receita. Há anos, 90% das salas exibem somente blockbusters americanos. É possível o cinema nacional independente vencer essa barreira?

Já tivemos uma vitória importante nesse aspecto, que foi a Lei da Cota de Tela. Por lei, todo cinema precisa incluir títulos nacionais na sua programação a todo momento. É lógico que isso não é suficiente e é muito difícil de ser fiscalizado. No Brasil, historicamente, os filmes americanos dos grandes estúdios se tornaram sinônimo de cinema. É preciso ter um olhar crítico e observar que isso não surgiu da escolha do público. Anualmente, o cinema brasileiro produz uma média de 300 longas-metragens, mas na hora da distribuição, entramos numa competição muito desigual com distribuidoras americanas bilionárias e que fornecem filmes para nossos cinemas o ano todo, e integrado a muita publicidade.

Os exibidores são pressionados a trabalhar sob os termos dessas grandes distribuidoras. Então, às vezes você consegue botar um filme nacional em 500 salas e, mesmo tendo uma boa semana de estreia, na próxima quinta-feira sai um Homem-Aranha novo e seu filme acaba sendo reduzido a uma fatia daquele mínimo exigido por lei. Agora, imagina se o Governo não entra para garantir esse mínimo? O cinema nacional ia se canibalizar, isso que ia acontecer.

A tendência ainda é essa, observa-se um aumento na competição pelas sobras do nosso parque exibidor. Isso não acontece em outros países. Há mais de 30 anos, a Coreia do Sul vem adotando medidas regulatórias estratégicas para subsidiar a exibição de filmes nacionais em suas salas de cinema. Não por acaso, o audiovisual sul-coreano se tornou referência mundial, graças a essa forte intervenção no mercado. Na França, um cinema de rua vai ter dificuldade para exibir um blockbuster, lá tem subsídios que tornam mais lucrativo eles exibirem filmes franceses. Da mesma forma, você não vai conseguir construir um shopping próximo a um cinema de rua. Isso é política de Estado, dar oportunidade para que um povo possa se assistir nas suas telas. E faz com que o audiovisual francês se torne economicamente forte. Não à toa que Cannes é importante cinematograficamente, mas também é um importante balcão de negócios. Hoje, é em Cannes que se decide quais filmes independentes vão ser distribuídos globalmente.

Da mesma forma, é política de Estado dos EUA essa pressão para que todo o mundo, todos os povos, assistam ao máximo possível de audiovisual industrial americano. Se o mercado de exibição se “regular”, entre muitas aspas, sozinho, só vamos observar a manutenção dessa lógica. O Estado brasileiro, portanto, precisa traçar suas estratégias para garantir a permanência dos filmes nacionais nas salas de cinema. Garantir que essa opção seja dada ao público, porque só aí ele vai poder dizer se gosta ou não dos filmes que produzimos. Uma boa parte da nossa classe política já entendeu que frear os excessos das Big Techs é uma questão de soberania. O Estado brasileiro precisa entender que fomentar o cinema nacional independente também é questão de soberania.

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