Manobra organizada para beneficiar a especulação imobiliária em Fortaleza trouxe quase 70 mudanças no Plano Diretor e foi assinado por 33 vereadores. Movimentos sociais se mobilizam contra e exigindo participação popular.
Renan Giménez Azevedo | MLB Ceará
LUTA POPULAR – Nos dias 25 e 26 de novembro, dezenas de famílias e movimentos por moradia ocuparam os jardins da Câmara de Fortaleza contra os retrocessos no novo Plano Diretor. As emendas reduzem Zonas de Proteção Ambiental (ZPA) e Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS), e ainda abrem espaço para a especulação imobiliária
O “emendão” trouxe quase 70 mudanças e foi assinado por 33 vereadores, garantindo maioria. Chegou às vésperas da votação, com mais de cem páginas, sem tempo para leitura. Depois veio o “remendão”, costurando emendas de várias bancadas e, pior, retirando o artigo que obrigava estudo técnico, participação popular e transparência para mudar o Plano Diretor. Na prática, abriram a porteira para obras e ajustes sem ouvir o povo.
33 horas pela democracia
Muito antes das atividades da Câmara de Fortaleza começarem, a galeria destinada ao público já estava lotada. Bandeiras dos movimentos sociais foram expostas lado a lado. Palavras de ordem pedindo respeito ao processo participativo do Plano Diretor eram entoadas. O objetivo ali era fazer alguma pressão para que votos pudessem ser virados em favor do que a população havia discutido. No primeiro dia das plenárias, foi anunciado que a Comissão Especial para o Plano Diretor se reuniria pela tarde.
Neste meio tempo, barracas foram montadas em frente ao auditório da Câmara. Assim a aquela ocupação nasceu. Os movimentos estavam coordenados juntos ao Campo Popular do Plano Diretor, uma frente ampla para garantir os interesses de moradores de ZEIS e movimentos populares nos debates públicos. Dezenas de movimentos populares compõem o Campo Popular, o que garante a legitimidade das reivindicações e propostas apresentadas.
O processo de revisão do Plano Diretor de Fortaleza, que durou seis anos, foi marcado por inúmeras contradições. Uma delas é que os interesses do setor imobiliário eram garantidos mesmo que estivessem ausentes nas conferências e reuniões públicas. Ao mesmo tempo, o Campo Popular apresentava centenas de propostas de interesse populacional que eram ignoradas pelo poder público. Diversos erros eram apontados, mas não foram corrigidos. Para auxiliar o processo, a Prefeitura investiu mais de R$5 milhões em uma consultoria que, no fim das contas, não teve serventia por conta do atropelo dos vereadores.
É no final deste histórico caótico que surgem bizarrices legais como o emendão. Como o objetivo da ocupação do Campo Popular era fazer pressão nos vereadores, ficou decidido que a estadia duraria exatamente 33 horas, em referência a cada um dos 33 vereadores que protocolaram o emendão. Nas redes sociais do Campo Popular e aliados, publicações foram feitas a cada hora completada.
Apenas os vereadores Adriana Gerônimo e Gabriel Aguiar, ambos do PSOL, apoiaram a ocupação, garantindo a segurança dos manifestantes. Já a maioria dos vereadores ignoraram o clamor popular. O vereador Adail Júnior (PDT), vice-presidente da casa, esbravejou no microfone enquanto na mesa: “Nós não precisamos de audiência pública. Nós não precisamos de conferência para nos dizer como é que a matéria vai ser tramitada nessa casa, não. Quem decide somos nós!”. A fala resume o desrespeito ao processo participativo.
O emendão e o remendão
Por conta da pressão popular, os vereadores decidiram acelerar a votação do emendão. Ao mesmo tempo, o vereador e relator Bruno Mesquita (PSD) enviou parecer favorável de mais uma emenda. O documento original tratava da redação de apenas um artigo do Plano Diretor, mas serviu de base para incluírem dezenas de outras alterações. Uma emenda de emendas, ou seja, um “remendão”.
As emendas do remendão eram propostas de vários outros vereadores. Serviu como um método de costurar toda a articulação política entre diversas bancadas da Câmara. Entretanto, uma das emendas era uma emboscada: foi retirado o artigo que exigia estudos técnicos, participação popular e transparência nos documentos para mudar o Plano Diretor. Em outras palavras, qualquer obra ou ajuste para beneficiar a especulação imobiliária pode ser feito a qualquer momento.
Mais tarde, em plenária, emendão e remendão foram acolhidos e o Plano Diretor da Câmara foi aprovado. No dia seguinte, o prefeito Evandro Leitão (PT) publicou a lei no Diário Oficial.
Menos ZPA significa mais calor e enchente nos bairros. Menos ZEIS coloca famílias sob risco de despejo e aumenta o aluguel. Obras sem estudo e sem transparência dão prejuízo ao trabalhador e lucro rápido a poucos. Desta forma, qualquer resquício de democracia no processo de revisão do que se chamou Plano Diretor “Participativo” e “Sustentável” deixou de existir.
A luta deve continuar
Este episódio ilustra muito bem como a democracia burguesa funciona. Mesmo que a população esteja em peso para defender seus interesses, os parlamentares se curvarão para aqueles que detém o capital. Neste caso, construtoras, incorporadoras e especuladores imobiliários. Também há o caso do Aeroporto de Fortaleza, onde a destruição da Mata Atlântica é vantajosa para os executivos alemães. Certamente, este Plano Diretor aprovado promoverá o aumento de pessoas sem teto, o rápido aquecimento da cidade e outros problemas que sequer podemos vislumbrar, como no trânsito e na saúde. Fortaleza se tornará uma cidade para turistas e não para seus moradores; para clientes e não para quem a constrói.
A classe trabalhadora, que mora, trabalha e faz a cidade, tem mais uma vez sua obrigação histórica. A ocupação de 33 horas mostrou a força do povo organizado para pressionar quem nos explora. Só a ação consciente da nossa classe pode barrar as barbáries que enriquecem poucos e pioram a vida de muita gente. A luta pelo direito à cidade continua: em cada bairro, em cada casa, cada trabalhador tem voz.