O massacre aconteceu na manhã do dia 16 de agosto, no município de Marikana, a cerca de 100 km de Johanesburgo, na África do Sul. O palco da carnificina foi uma das mineradoras da companhia britânica Lonmin Platinum, uma das maiores produtoras mundiais de platina, metal altamente resistente à corrosão, com várias aplicações na indústria (como na fabricação de catalisadores de automóveis, de joias, de instrumentos cirúrgicos, próteses odontológicas etc). Trinta seis dos mais de três mil mineiros, em greve desde o dia 10 por melhores salários e melhores condições de vida, foram alvejados a tiros pela polícia durante protesto realizado nas imediações da mina. Além dos mortos, 78 pessoas ficaram feridas e 259 foram presas. Desde o início do movimento, já haviam morrido, em confrontos anteriores entre a polícia e os grevistas, outras 10 pessoas, entre elas seis operários da mina de Marikana, somando um total de 44 vítimas fatais.
Os trabalhadores exigiam aumento de 4 mil para 12,5 mil rands1, ou seja, um reajuste de 200%. Ao contrário dos discursos oficiais, tal reivindicação nada tem de absurdo. O custo de vida na África do Sul é um dos maiores do continente africano, situação que torna o salário atual recebido pelos mineiros – equivalente a R$ 972,40 – totalmente insuficiente para suprir necessidades básicas como alimentação, moradia e saúde, condenando-os a uma situação de penúria cada vez mais insuportável.
Além disso, as condições de trabalho dos mineiros não melhoraram com o crescimento econômico obtido pelo país nos últimos anos. Para Adam Habib, professor da Universidade de Johanesburgo, o cotidiano dentro das minas é análogo ao vivido pelos trabalhadores no início do século 20, época em que se deu início à exploração mineral na África do Sul.2
Isto tudo contribui para revelar a desumanidade da atitude tomada pela direção da Lonmin. Desde o início, a empresa negou-se a negociar com a categoria em greve, alegando que o sindicato à frente da greve não representava oficialmente os mineiros. No caso, a Associação de Trabalhadores de Mineração e Construção (AMCU) – sindicato recém-fundado, em oposição à tradicional e governista NUM, ou União Nacional de Mineiros, existente há 20 anos – havia rechaçado, com amplo apoio da base, uma proposta de reajuste salarial feita pela NUM em comunhão com os donos das mineradoras do país. Este foi o pretexto para a empresa conseguir o aval da justiça sul-africana e decretar o movimento ilegal, desencadeando a brutal repressão que culminou no massacre dos trabalhadores.
Sem justificativas
A desculpa apresentada pela polícia foi a de que os mineiros estariam “armados até os dentes” com pedaços de madeira e facões, entre outras armas improvisadas, e que teriam avançado um cordão de isolamento para atacar alguns policiais que faziam o cerco. Uma porta-voz do Ministério da Polícia chegou ao descaramento de dizer que a morte dos trabalhadores “foi trágica, porém inevitável”, já que eles não estavam dispostos a cessar o protesto.
Após o massacre, os grandes meios de comunicação passaram a responsabilizar a greve pela morte dos trabalhadores. No entanto, nada disseram sobre as degradantes condições de vida e de trabalho que levaram aqueles homens à luta, assim como nada dizem sobre a intransigência da empresa ou a truculência do Estado em relação às reivindicações feitas pelos trabalhadores em muitas outras mobilizações, nem o fato de que foi exatamente isso que aumentou a revolta deles e os obrigou a radicalizar o movimento e empunhar armas como último recurso de manifestação e autodefesa.
Mas quem tem o direito de culpar os mineiros por recorrerem às armas, à violência? Uma empresa como a Lonmin, que, tal como qualquer outra grande empresa capitalista, promove uma violência diária contra os operários, sugando deles todas as riquezas produzidas sem lhes oferecer nem mesmo o essencial para viverem dignamente? Ou o Estado, que chegou a mobilizar quase dois mil soldados de elite, fortemente armados e equipados com cavalaria e helicópteros, para impedir “um ataque brutal” de jovens operários, a maioria deles famintos e visivelmente magros, que tinham em mãos apenas suas ferramentas de trabalho rústicas como meios de proteção? É como disse uma vez o grande dramaturgo revolucionário alemão Bertolt Brecht: “Do rio que tudo arrasta se diz que é violento, mas não se dizem violentas as margens que o comprimem”.
O apartheid é social
Apesar de ter derrotado a ditadura e de gozar formalmente de direitos, a maioria esmagadora dos sul-africanos continua miserável. Cerca de um quarto da população está desempregada e, segundo a ONU, vive com menos de US$ 1,25 por dia. E a maior parcela deste contingente é de negros (79,5%).4 A principal razão disso é o aprofundamento do compromisso do governo com os mesmos setores econômicos nacionais e estrangeiros que impuseram o regime segregacionista.
O Congresso Nacional Africano – partido do ex-presidente Nelson Mandela e uma das principais organizações da resistência negra – no governo desde de 1994, preferiu trair os anseios populares por reformas sociais mais profundas e implantar uma série de medidas neoliberais (privatizações, corte de verbas sociais, elevação dos preços dos produtos, etc.). O mesmo CNA rejeitou a proposta de nacionalização do setor de mineração – o mais importante da economia do país – mesmo com as fortes mobilizações feitas pelos trabalhadores e pela juventude.
O resultado é a completa incapacidade do Estado de, senão acabar, ao menos minimizar as mazelas econômicas e sociais que castigam o povo sul-africano. Num contexto injusto como este, chacinas como a que vitimaram os mineiros de Marikana são cada vez mais prováveis.
Podemos concluir, então, que a essência do apartheid na África do Sul sempre foi e continua sendo social e, não simplesmente racial. Acontecimentos como esse mostram que os explorados não ficam parados diante da exploração. Eles necessariamente acabam se levantando, de uma forma ou de outra, para a luta pela preservação e ampliação de seus direitos e pela transformação radical da sociedade. Exemplo disso são as inúmeras mobilizações ao redor do mundo, que evidenciam o acirramento da luta de classes do mundo: milhares de greves, ocupações urbanas e rurais, atos contra a carestia, contra o sistema capitalista, contra as guerras imperialistas etc.
Jonatas Henrique, Belo Horizonte
1 Moeda oficial da África do Sul.
2 Folha de S.Paulo, 20.08.2012.
3 1 onça-troy equivale a 28,35 g.
4 ONU. Human development indices. 2008