Para além das desigualdades salariais entre jogadoras e jogadores, casos como o do goleiro Bruno, Robinho, Cristiano Ronaldo e Neymar evidenciam a misoginia existente no futebol.
Guilherme Piva e Jady Oliveira
Em 2017, o jogador Robinho, o “rei das pedaladas”, foi condenado pela justiça italiana a nove anos de prisão por abuso sexual. À época, Robinho defendia o Atlético-MG. Na ocasião, houve alguns torcedores que saíram em sua defesa, argumentando que “o que importava era o que ele fazia dentro de campo, o resto era problema dele”. Ao mesmo tempo, outra parte da torcida, com adesão massiva das torcedoras, protestava contra a conivência da diretoria do clube para com ele e a ausência de um posicionamento. Devido à enorme repercussão do caso e pressão da torcida atleticana, o clube rescindiu o contrato de Robinho.
RESISTÊNCIA – torcedoras do Atlético pedem a demissão de Robinho com faixa exposta em frente à sede do clube.
Começou-se então a especular um interesse do Vasco em contratá-lo, porém a torcida cruzmaltina prontamente se pôs veementemente contra sua vinda, afirmando categoricamente que “não queria estuprador no seu Vasco”. Para não prejudicar a imagem da instituição, o clube desistiu. Robinho chegou a ser especulado também no Santos, ficando, mais uma vez, só na especulação.
Por fim, Robinho assinou contrato com o Sivasspor, da Turquia. Bom, parece absurdo que um atleta condenado por estupro – não se fala aqui de uma acusação que ainda não foi corroborada, mas sim de uma condenação a nove anos de prisão, confirmada em segunda instância – ainda tivesse ofertas de contrato e assinasse com um time. Afinal, independente do que fazia dentro de campo, era um criminoso e deveria cumprir pena pelo que fez.
Hoje, o jogador segue atuando na Turquia, impune. Da mesma forma, Cristiano Ronaldo, acusado de estupro por uma modelo, segue atuando e ganhando milhões na Juventus. Segundo informações divulgadas recentemente pela imprensa, a promotoria afirma que a acusação contra ele, feita em 13 de junho de 2009, já não poderia ser provada em decorrência dos 10 anos passados.
Em uma sociedade que naturaliza a violência contra a mulher, acobertando agressores e oprimindo as vítimas, as mulheres são coagidas a não denunciar. Quando o crime envolve um homem em posição de poder econômico e com visibilidade midiática isso é ainda mais intensificado. A forma como a justiça burguesa atua vagarosamente na apuração de casos de estupro e violência intensifica a vulnerabilidade das vítimas e a proteção aos agressores, como expressa esse caso, arbitrariamente dado como encerrado em 22 de julho desse ano.
Outras vezes, mesmo com a condenação legal, a impunidade pesa contra as mulheres. Como no começo de 2018, quando o Boa Esporte, equipe da cidade mineira de Varginha, causou reboliço e revolta ao anunciar a contratação do goleiro Bruno, condenado em 2010 a 20 anos e 9 meses de prisão pelo assassinato sádico de Elisa Samúdio , havendo quem defendesse que o jogador “merecia uma segunda chance”.
IMPUNIDADE – Pais levam filhos para receber autografo de Bruno Fernandes, responsável pelo assassinato de Elisa Samúdio, após contratação do Boa Esporte.
REVOLTA – Torcedoras protestam contra contratação de Bruno. No cartaz, fazendo uma analogia com o escudo do time, lê-se: Contratar Bruno não é uma Boa #ForaBruno.
Seletividade e hipocrisia: a complacência e o endeusamento
É curioso que muitas pessoas que normalmente defendem castração química, pena de morte e outras medidas semelhantes para criminosos, de repente demonstrem piedade e complacência para com os infratores quando estes são homens em posição de destaque.
O futebol, inegavelmente, é uma das maiores paixões do povo brasileiro. E isso, claro, traz também consequências negativas. Uma delas é o endeusamento dos atletas, que são colocados em um patamar de super-herois, quase dignos de épicos gregos. Isso faz com que, na cabeça de alguns fãs, estes sejam perfeitos e, portanto, seus delitos sejam minimizados.
Um dos exemplos mais claros disso é o de Neymar. Sempre protegido de forma paternalista por seu empresário (que também é seu pai), por sua equipe pessoal (staff) e mesmo pela imprensa, sendo chamado popularmente de “menino Ney”, mesmo já tendo 27 anos.
Ao ser acusado de estupro pela modelo Najila Trindade, em vez de revolta, a estrela do PSG causou comoção. Imediatamente, antes mesmo que os fatos começassem a serem investigados, vários torcedores já se apressaram em julgar o caso, afirmando que Najila era uma “vagabunda” que queria se aproveitar da fama e do dinheiro do milionário camisa 10 da seleção.
Para se defender, Neymar fez um vídeo no Instagram expondo mensagens trocadas com a modelo no Whatsapp, que incluíam fotos íntimas. Além de ter sua intimidade exposta para os mais de 122 milhões de seguidores do jogador na rede social, Najila ainda sofreu linchamento virtual. Bolsonaro, como era de se esperar, se solidarizou não com a vítima, mas com o acusado.
Observa-se também diante desses fatos uma minimização da violência contra a mulher. Afinal, os torcedores que defenderam Neymar e outros jogadores, que fizeram e fazem até hoje memes com o crime cometido por Bruno, são os mesmos que estigmatizaram o atacante Jobson, que se destacou no Botafogo e depois viu sua carreira declinar rapidamente por seus problemas com drogas. Paradoxalmente, ao mesmo tempo que estigmatizavam e marginalizavam o jogador por sua dependência química, silenciavam sobre as acusações de estupro contra ele, nada dizendo a respeito.
O papel da mídia na construção da imagem dos atletas
A grande mídia tem um papel fundamental para a construção de egos inflados nos jogadores. Tão logo começam a se destacar em algum grande clube, a imprensa esportiva já começa a tecer comparações com grandes craques da história do futebol. Especulam quem será o “novo Ronaldinho”, comparam os jovens atletas a Pelé, Maradona, Garrincha, e tantos outros nomes consagrados do passado.
Isso faz com que as jovens promessas se tornem pessoas soberbas, crendo serem os donos do mundo, e imaginando que serão sempre idolatrados e defendidos por seus fãs, não importa o que façam. A infantilização e o paternalismo com que são tratados por todos ao seu redor, cria uma válvula de escape, pois quando erram, afirma-se que “é só um menino”, ainda que os erros sejam recorrentes e não proporcionem à pessoa que errou nenhum aprendizado. A própria alcunha do “menino Neymar”, por exemplo, foi criada pelo locutor da Globo Galvão Bueno.
Também a separação conveniente que é feita entre vida pessoal e vida profissional para acobertar os erros e crimes cometidos, contribui para a inconsequência e delitos deliberados dos atletas, na certeza de que seus atos serão prontamente perdoados sem grandes riscos à carreira.
A cultura misógina do futebol
É contraditório e insuficiente dar mais espaço na mídia e incentivo ao futebol feminino no país e no mundo, sem combater a misoginia que ainda predomina nesse meio, que é fomentada não só institucionalmente com a desigualdade salarial e estrutural, mas também culturalmente.
Ao mesmo tempo que tivemos no último mês a Copa do Mundo Feminina da França, que alcançou divulgação e audiência históricas, sendo transmitida inclusive pelo SporTV/Globo, Band e outras emissoras da grande mídia, tivemos, ano passado, episódios de machismo na Copa do Mundo Masculina da Rússia, sendo o mais explícito o caso em que torcedores brasileiros que viajaram ao país induziram mulheres russas a repetir expressões chulas e pejorativas em português, sem que elas sequer entendessem o que estavam dizendo ou o que acontecia.
Ao serem criticados nas redes sociais, chegando um ou dois deles a serem demitidos, os envolvidos se defenderam e se vitimizaram, afirmando serem pais de família e mais uma vez minimizando o fato, afirmando que “foi só brincadeira”.
Também nas arquibancadas as mulheres sofrem com toda sorte de reflexo do machismo. Desincentivadas a acompanhar futebol, quando vão ao estádio, ouvem ofensas machistas, são objetificadas e assediadas.
Em junho desse ano, integrantes do núcleo feminino da Mancha Azul, torcida organizada do CSA, de Alagoas, foram suspensas pela diretoria da entidade por terem participado, junto a torcedoras de outras equipes da capital alagoana, da primeira reunião estadual do Movimento Feminino de Arquibancada (MFA), acusadas de “desrespeitar a ideologia da torcida”.
Após a publicação de uma reportagem no TNH1 e na TV Pajuçara dando repercussão ao episódio, a torcida lançou em suas redes sociais uma nota se colocando em posição de vítima, e indagou sobre a torcedora que deu entrevista: “em relação à menina, gostaríamos de saber em que lhe afeta, ou melhor, qual o seu número de sócio da organizada? Quantas parcelas do sócio torcedor da organizada ela pagou?”, afirmando ainda que a torcedora em questão não contribuía em nada com a torcida, ou seja, buscaram justificar a atitude machista inferiorizado a torcedora, em mais uma atitude de machismo.
Ao final da nota, contrastando com as práticas do clube, veio o clássico discurso: “aqui, o pobre não se diferencia do rico, o negro não se diferencia do branco, o homem não se diferencia da mulher”. Ao ler os comentários da postagem no Instagram da torcida, um seguidor questiona sobre o fato de dirigentes homens da torcida terem tirado uma foto igual, numa reunião com autoridades junto a integrantes de uma torcida organizada do CRB, escancarando a seletividade e o machismo da diretoria.
Nesse cenário, as torcidas femininas vêm crescendo, ganhando cada vez mais força, se politizando e indo para o enfrentamento direto do machismo existente no meio dessas agremiações. Vale aqui destacar o papel essencial que a torcida feminina do Atlético teve para que a diretoria do clube rescindisse o contrato de Robinho diante da condenação por estupro, pois se não tivesse havido mobilização e organização das torcedoras, possivelmente o caso teria sido abafado.
MULHERES ORGANIZADAS Em diversos clubes brasileiros, as torcidas organizadas femininas têm realizado importantes intervenções, como é o caso do Movimento Toda Poderosa Corinthiana.
Assim. se queremos ver novas Martas, Cristianes e Formigas surgindo no futebol brasileiro, mais do que dar melhores condições para que as mulheres possam jogar profissionalmente, precisamos também mudar o ambiente futebolístico, de modo que as mulheres possam se sentir confortáveis não só para jogar futebol, mas também para frequentar estádios, bares esportivos, participar de torcidas e de tudo mais que envolve o futebol.
Essa mudança, vem sendo expressa na resistência e luta das torcidas organizadas femininas, no entanto, para que seja ainda mais efetiva é preciso que não se restrinja ao universo do futebol. Isso porque, historicamente, o capitalismo se estruturou sobre a exploração das mulheres, sobretudo das mulheres negras, retirando seu lucro dos corpos escravizados, do trabalho doméstico não remunerado, das jornadas de trabalho mal pagas.
O futebol, como parte da sociedade, reflete seu machismo e misoginia. Nesse sentido, a emancipação das mulheres no esporte só é possível com uma grande transformação na sociedade, que coloque abaixo o sistema de exploração capitalista e o substitua por um sistema baseado na solidariedade e no poder das trabalhadoras e trabalhadores, onde não haverá espaço para exploração sobre os corpos das mulheres.