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sexta-feira, 22 de novembro de 2024

O guerreiro Mandu Ladino

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Corria a segunda metade do século 17. O estado do Piauí iniciava o seu povoamento a partir da penetração do gado oriundo da Bahia, de Pernambuco e um pouco do Ceará. O boi ia em busca de pasto; atrás do boi vinha o homem, abrindo picadas, erguendo currais, construindo palhoças, fazendo filhos… e invariavelmente matando os nativos que viviam na região.

Nas sociedades constituídas a partir da pecuária, a moeda corrente é o boi e a vida de uma rês, no mais das vezes, tem mais valor que vida de um homem.

Por essa época habitava o Piauí o maior assassino de índios e negros que o Brasil já conheceu: Domingos Jorge Velho. A coroa portuguesa lhe concedeu dezenas de léguas de terra às margens do rio Poti como reconhecimento pelos  serviços prestados aos senhores de escravos e de terras. Foi do Piauí, já em idade avançada, que Domingos Jorge Velho partiu, atendendo à convocação do governo de Pernambuco, para aniquilar os negros insurretos do Quilombo dos Palmares.

Jorge Velho não se cansava de afirmar: “Índio bom é índio morto, pois mais traiçoeiro impossível. Já as índias servem pros afazeres domésticos e pras necessidades sexuais”.

Bernardo Aguiar, oriundo do Maranhão, aprendeu fielmente a lição do coronel Jorge Velho. Atravessou o Rio Parnaíba – que os índios chamavam de punaré – estabeleceu-se na bacia do Rio Longá, mais ao nascente, e foi ampliando os seus domínios. Ao tempo em que reproduzia bois, aniquilava aldeias que ficassem até trinta léguas de distância de sua propriedade, chamada Bitorocara.

Foi o que se deu com a aldeia dos índios abelhas, assim chamados porque conviviam harmonicamente com as abelhas teúbas na região. Os homens de Bernardo chegaram pela madrugada na aldeia cuspindo fogo covardemente sobre os índios ainda sonolentos. Como prova do feito levaram ao chefe os dois filhos pequenos do cacique, únicos sobreviventes do massacre.

A mais velha, Aluhy, não se conformou e em poucos dias fugiu da fazenda e voltou à aldeia, onde se deparou com a horrível cena dos cadáveres de todos os seus entes queridos. Enterrou-os um a um em uma mesma cova, foi recapturada e não mais ofereceu resistência. Seu mundo tinha desabado. Acabou afeiçoando-se ao filho mais novo do fazendeiro, Miguel, que também se afeiçoou a ela e com ela casou-se e teve uma filha.

O índio bom

O irmão mais novo de Aluhy tinha o nome de Mandu. Foi entregue a um padre capuchinho de nome Lucé, que dirigia uma missão na aldeia Boqueirão do Cariri, no sertão da Paraíba, e encontrava-se em desobriga pelo alto Longá na oportunidade.

Padre Lucé tratava a todos, e em particular a Mandu, com atenção e cordialidade. Ensinou-lhe o português, rudimentos do espanhol, a reza, os costumes dos brancos e, devido à sua enorme esperteza, acrescentou-lhe a alcunha de ladino. Nascia ali Mandu Ladino.

Durante oito anos, Mandu Ladino, que chegara à missão aproximadamente com seis, viveu harmoniosamente com os índios cariris, com os escravos e os padres, mas o seu espírito de liderança já se fazia presente nas caçadas, no diálogo, nas brincadeiras. Não raro, Mandu voltava da caça com uma jaguatirica sobre os ombros.

Essa harmonia foi rompida com a substituição de padre Lucé por padre Martinho, que logo passou a maltratar e desrespeitar os nativos, tratando-os com rispidez e combatendo violentamente as suas crenças e valores. Padre Martinho cometeu o desatino de atear fogo em todas as imagens e símbolos sagrados cultivados pelos indígenas, obrigando todos a assistir tal violência, com armas apontadas para eles.

A resposta não tardou: numa madrugada padre Martinho acordou assustado e viu que a sua igreja católica, símbolo da sua fé, tinha se incendiado, com todos os seus santos. Ao redor da igreja, com tochas de fogo na mão, dezenas de índios gritavam e dançavam ensandecidos. À frente deles estava um menino de 14 anos: Mandu Ladino. Padre Martinho tentou impor-se perante os insurretos, mas foi abatido por uma borduna na cabeça, vindo a falecer ali mesmo.

Sob a liderança do menino feito homem, Mandu Ladino, mais de uma dezena de índios cariris fugiram da missão. Nenhum deles tinha ideia de para onde ir, a não ser Mandu. Era chegada a hora de fazer o caminho de volta, ir em busca da sua história, retomar as pegadas do seu povo.

Após 29 dias – uma lua inteira – cinco guerreiros cariris chegaram ao pé da serra da Ibiapaba, divisa de Piauí e Ceará. Os demais se dispersaram, se agregaram a outras tribos ou morreram em combate com os homens e as feras. Poucos, fracos e cansados, foram presas fáceis de fazendeiros, que os capturaram como escravos.

Unir para lutar

Foi na condição de vaqueiro escravo da fazenda Alegrete que Mandu Ladino passou os primeiros anos de retorno ao Piauí. Incontáveis vezes o amarraram a um tronco de árvore para açoitá-lo com relho de couro cru até que a pele virasse carne viva. Para evitar gangrena, davam-lhe um banho de sal grosso que ele suportava silenciosamente.

Mandu Ladino logo percebeu que a quantidade de bois aumentava na mesma proporção em que se reduzia o número de aldeias indígenas. A conclusão era lógica: ou havia reação dos índios ou todos seriam dizimados, reduzidos a pó. Isoladamente era impossível vencer o poderio militar e logístico do branco, daí a necessidade de unir toda a nação indígena.

Foi pensando assim que estabeleceu contato, imitando o canto dos sabiás para não ser delatado, com a tribo dos aranis, cujo cacique, Xerém, teve uma filha assassinada pelo capataz da fazenda Alegrete. Tudo combinado por código, em uma noite sem lua os aranis chegaram à fazenda, mataram silenciosamente os cachorros, lançaram flechas incandescentes sobre as casas de palha e, já com o auxílio de Mandu, justiçaram um a um os moradores, exceto as mulheres, as crianças e o capataz, algoz de Mandu e assassino da filha do cacique Xerém, que foi levado vivo para que fosse servido em um solene banquete antropofágico.

A lenda de Mandu e a ação dos aranis se espalharam. Mandu em vão tentou convencer os aranis a abandonar a aldeia. Logo, logo, os brancos vieram com sede de vingança. Em inferioridade numérica e militar, Mandu demonstrou o porquê da sua alcunha. Ora orientava os índios a matarem os cavalos enquanto os brancos dormiam; ora mandava as índias tirarem caixas de marimbondos para lançá-las sobre os brancos; ora armava ciladas em desfiladeiros sem saída.

A aldeia aranis enfim foi vencida, com a morte do cacique Xerém e da maioria dos guerreiros, mas Mandu conseguiu resistir e fugir com cerca de 50 pessoas, vinte delas talhadas para a guerra. Mandu inicia a sua saga visando à união da grande nação indígena para uma guerra sem trégua ao branco invasor.

Na condição de novo cacique dos aranis, fato inédito para um índio de outra tribo, Mandu desce o rio Piracuruca, onde propõe à tribo do mesmo nome uma união de forças para combater o inimigo branco. Por essa época já tinha tomado por esposa a bela índia Korena, viúva de um guerreiro aranis, morto em combate.

Vitoriosos em mais uma ousada ação, os agora quase cem guerreiros subiram a serra Grande, divisa com o Ceará, onde tentariam convencer os índios acaraús, itapajés e pitiguaras a juntarem-se a eles. A missão foi parcialmente exitosa, com a recusa taxativa de apenas uma das tribos.

Já formavam uma pequena e aguerrida nação: aranis,  piracurucas, itapajés, alguns acaraús, Mandu dos Abelhas, dois índios da antiga cariri e alguns ex-escravos. Partiram para o litoral piauiense, no famoso delta do Parnaiba, onde resistia bravamente a tribo dos tremembés. Unir-se a eles era fundamental para conformar o exército imaginado por Mandu. Marcharam rumo ao rio Parnaíba – o velho Punaré – e por ele o trajeto era feito mais facilmente em balsas construídas com a madeira do buriti.

“Índios corsos” é como o branco invasor passou a chamar o exército de Mandu, numa alusão depreciativa aos piratas do mar. Os guerreiros indígenas, diferentemente  dos piratas, tinham origem e tinham causa: viver livremente em suas próprias terras.

No rastro de sangue que se formava em torno de Mandu, os cadáveres do cunhado do ouvidor-geral do governo do Maranhão e do irmão e herdeiro de Domingos Jorge Velho foram a senha para que os fazendeiros do Piauí fossem até São Luís, a que o Piauí era subordinado, para solicitar intervenção oficial e conter a marcha de Mandu Ladino.

A luta

Para formar o exército oficial dos brancos foram disponibilizados 80 homens, 100 índios flecheiros, montarias, armamentos para todos e víveres assegurados pelos fazendeiros, todos sob o comando do coronel Souto Maior. A tropa resolveu marchar rumo ao rio Parnaíba para surpreender os guerreiros de Mandu Ladino, que a essa altura subiam o rio de volta, vindo do litoral para o poente.

De fato, só ao chegar em pleno litoral, Mandu veio a saber que os índios tremembés haviam sido completamente aniquilados pela força de quatro navios que chegaram à costa piauiense propondo amizade e os surpreenderam, crédulos e desarmados. Foram todos mortos traiçoeiramente.

Com uma rede de informantes voluntários cada vez maior, formada principalmente por índios escravos – os chamados índios mansos que ele tanto odiava, mas que terminavam lhe prestando um grande serviço – Mandu soube da existência da tropa oficial e resolveu, ele sim, tomar a iniciativa do combate.  A seu favor contava o fator surpresa. Ninguém em sã consciência esperava que ele tomasse a iniciativa da luta. E ele assim o fez, ainda em terras maranhenses, do lado de lá do Parnaiba, quando o inimigo estava desprevenido.

Contando com a colaboração de aliados entre os índios flecheiros e com a ajuda da madrugada escura, Mandu Ladino comandou um combate com as poderosas e surpresas forças armadas do Maranhão, e venceu-as triunfalmente  à base de flechas, paus, facões e pedras. A data provável da batalha foi 12 de junho de 1712.

O massacre feriu de morte a autoridade do Estado e pôs em xeque o cargo do governador do Maranhão, que de pronto autorizou o recrutamento de 200 soldados brancos e – novidade – mandou adquirir a quantidade que fosse necessária de malhas de ferro para cobrir as fardas dos soldados, tornando-os praticamente imunes às flechas venenosas dos índios. Para comandar a guerra convocou o fazendeiro Bernardo Aguiar, que dividiu o exército em quatro pelotões de 50 homens, cada um comandado por um capitão da sua confiança. Por ironia do destino, Bernardo foi o mandante do massacre que redundou no assassinato de todos os índios abelhas.

Mandu Ladino, consciente da reação inimiga, resolveu esconder-se, sumir de circulação, para recuperar as forças, descansar seus guerreiros e amadurecer novas estratégias. Para tanto pediu guarida aos índios tabajaras, que habitavam o pé da Serra  da Ibiapaba, e acolheram Mandu e seu exército num socavão de morro. Os ibiapavas não eram de confiança, eram dóceis aliados do branco invasor, mas Mandu não tinha muitas opções.

A traição

O acordo durou alguns anos, até que Mandu começou a sentir cheiro de traição no ar, pelo jeito esquivo dos líderes tabajaras, e as ausências prolongadas do padre que dava assistência à aldeia. Não tardou a chegar notícia dando conta da aproximação do exército de Bernardo. Sem alternativa, Mandu comandou a retirada rumo ao nascente, mas apartou as mulheres, crianças e anciãos, que seguiram por itinerário diverso do dos seus guerreiros.

Fazer uma retirada estratégica com cerca de 100 guerreiros a pé com um exército montado e bem nutrido no seu encalço não é tarefa fácil. Em alguns dias Mandu foi alcançado e a batalha se verificou sangrenta em um vale descampado, na localidade onde hoje é o município piauiense de Batalha. Além da desvantagem militar e numérica, os índios não entendiam por que suas flechas não atingiam o inimigo, ficando presas na sua couraça de ferro, sem penetrar-lhes o corpo. Quando se deram conta de que deveriam mirar nas montarias e não nos cavaleiros, a batalha já estava perdida. Cerca de 80 guerreiros índios, a maioria dos cavalos e quase nenhum soldado estavam mortos. Mandu estava entre os 20 guerreiros que conseguiram se evadir.

O exército de Bernardo saiu em seu encalço, não permitindo que ele atravessasse o Parnaíba, rumo ao Maranhão. Mandu, seus 20 guerreiros, mais sua mulher Korena, seu filho e as demais mulheres e crianças que haviam se reagrupados tiveram como alternativa descer o rio rumo ao litoral, com o exército à margem, atirando sempre. Terminou sendo abatido quando atravessava a nado o Rio Igaraçu, provavelmente em 1717, em Parnaíba.

A morte de Mandu Ladino foi o fim da saga dos índios em território piauiense. Hoje existem apenas raros vestígios, enterrados, da passagem dos nativos por este solo. Todas as 150 tribos do Piauí foram dizimadas, sendo este, o Rio Grande do Norte (mais o Distrito Federal) os únicos Estados brasileiros onde não mais se registra a presença de nenhum dos primeiros habitantes do Brasil. Mas a lenda do seu guerreiro maior não se apagou, e algum dia será contada nas escolas do nosso país como parte integrante da história oficial do Brasil.

Fonte: Livro Mandu Ladino de Anfrisio Neto Lobão Castelo Branco.

Pedro Laurentino Reis Pereira, funcionário público no Piauí, escritor e poeta

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