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sexta-feira, 22 de novembro de 2024

O desaparecimento de vítimas da ditadura é crime contra a humanidade

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A instalação de um governo de exceção, pelos meios golpistas e totalitários, sempre vem carregado de uma série de perseguições e infrações aos direitos fundamentais dos membros de uma determinada sociedade.

Entre os vários crimes que as classes dominantes de determinadas épocas cometem, com certeza um dos piores é o desaparecimento dos seus opositores, que sempre vem em conjunto com sequestros, torturas, estupros, assassinatos e, não bastando, ocultação dos seus restos mortais.

A entrega dos corpos dos guerreiros depois de confrontos em guerras constitui-se uma tradição milenar sempre respeitada em praticamente todas as sociedades já existentes. Essa tradição é fundamentada pelo respeito, que mesmo os piores inimigos possuíam, aos mortos em combate e, principalmente, aos seus familiares, que preparavam cerimônias em homenagem aos entes queridos que haviam perdido a vida em combate. Essas cerimônias ocorriam nos momentos de trégua, quase sempre para esse determinado fim.

No entanto, várias ditaduras desrespeitaram essa tradição milenar, pois assim conseguiam ferir mais profundamente os seus opositores. Foi o que ocorreu nas ditaduras militares implantadas na América Latina entre as décadas de 50 e 90, com o auxílio do imperialismo estadunidense.

No Brasil, segundo o relatório oficial da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, houve aproximadamente 50 mil detenções arbitrárias, 7.367 acusações a opositores, 4 condenações à morte, 130 banimentos, 4.802 cassações de mandatos políticos, 6.592 militares punidos, 245 estudantes expulsos das universidades e 475 mortos e desaparecidos. Só na Argentina, a tragédia resultou num total de 30 mil mortos, 340 campos de concentração e cerca de 9 mil desaparecidos até os dias atuais, como afirma a Comissão Nacional sobre o Desaparecimento de Pessoas daquele país. Lembremos que muitos ainda não constam desses dados, pois a necessidade burocrática exige provas. Daí percebe-se a dimensão de tal crime contra os opositores, contra os direitos humanos e contra a humanidade.

Esse crime foi cometido contra Alexandre Vanucchi Leme, Manoel Fiel Filho, Manoel Lisboa, Emmanuel Bezerra e tantos outros, continuando até hoje, pois os inimigos dos poderosos passaram a ser os pobres, que são desaparecidos por órgãos de segurança pública nos Estados, por serem tachados de bandidos.

Nos últimos anos muito se tem discutido sobre os desaparecimentos, a abertura dos arquivos, o julgamento dos criminosos do regime e a reconstrução dessa história fundamentada no direito à memória e à verdade. Sem dúvida todos esses pontos corroboram plenamente a necessidade de julgamento dos sujeitos que cometeram crimes contra o povo brasileiro e o pagamento devido de tudo o que já fizeram. Todas essas teses, porém, esbarram na Lei da Anistia brasileira e no entendimento do órgão de jurisdição máxima do direito interno, o Supremo Tribunal Federal (STF).

Numa perspectiva jurídica, relembrar nossa história e defender a condenação de nossos heróis por si só não resolve. Por mais horríveis que os golpistas foram e por mais heróicos que nosso povo tenha sido, somente sua história não revogará a autoanistia que os militares promulgaram, mesmo sendo essa prática condenada pelo ordenamento internacional de proteção aos direitos humanos.

Os mais reacionários defendem que o Brasil não estava submetido a nenhuma norma internacional que proibisse o que ocorreu de errado aqui. Baseando-se no princípio da legalidade, defendem a não penalização de tais agentes. Outros advogam a tese de que o que já passou está passado, não se devendo penalizar os criminosos, pois, inclusive, o tempo de suas penas já prescreveu, não podendo o Estado brasileiro condená-los. Tudo isso, propositadamente, tornou-se uma confusão jurídica, com intuito de impedir a responsabilização dos seus sujeitos.

Mesmo assim, essa responsabilização não desaparecerá, pois nas últimas décadas surge um novo caminho que não fere o princípio da legalidade, as prescrições antes defendidas e mais nenhum argumento para não julgar os torturados e assassinos das ditaduras: o desaparecimento forçado como crime nos tratados internacionais.

Surgido no seio do sistema regional interamericano de proteção aos direitos humanos, a partir da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, o desaparecimento forçado de pessoas constitui várias infrações aos direitos fundamentais dos seres humanos e passa a ser amplamente condenado, como crime de lesa-humanidade, em todo o continente.

Desde a década de 1970, em praticamente todos os relatórios da Comissão Interamericana, há denúncias de desaparecimento de pessoas por parte de órgãos estatais ou permitidos por estes. Na Argentina, por exemplo, foi comprovado que os órgãos de segurança da ditadura jogavam os opositores vivos em mar aberto.

Como a Declaração sobre a Proteção de Todas as Pessoas contra o Desaparecimento Forçado, da ONU, em 1992, e a Convenção Interamericana de Desaparecimento Forçado de Pessoas, da OEA, em 1994, determinam que o crime de desaparecimento forçado de pessoas é um crime contínuo e permanente, ele, a todo momento, está em execução, somente se finalizando a ação daquele crime com o descobrimento do paradeiro da vítima.

Neste caso, a partir do momento em que o Estado ratifica tal tratado e não localiza as vítimas de desaparecimento por parte dos agentes estatais, comete o crime em questão. Como foi generalizado, com centenas de vítimas, também é considerado imprescritível e não passível de anistia ou perdão, por transgredir os direitos humanos.

A condenação que o Estado brasileiro no ano passado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos tem suas raízes no desaparecimento forçado de pessoas. Lembremos que essa Corte possui jurisdição contenciosa reconhecida pelo Brasil, tornando obrigatória a sua sentença.

Devemos, hoje, defender mais energicamente a abertura e localização dos arquivos da ditadura militar, o julgamento e condenação dos culpados pelos crimes selvagens ocorridos devido ao regime, o nosso direito à memória e à verdade, passando pela localização dos corpos dos, ainda, desaparecidos.

Porém temos, também, uma tarefa imediata: a cobrança pelo imediato cumprimento da sentença da CIDH, da revogação da decisão do STF sobre o caso, da localização dos arquivos secretos da ditadura e do julgamento dos criminosos que todos os dias cometem novamente o crime do desaparecimento forçado de pessoas.

Só assim, os lutadores da democracia e do melhor para o nosso povo, não serão mais “cruzes sem nomes, sem corpos, sem datas”, como disse Gonzaguinha, na sua obra a Legião dos Esquecidos.

Tiago Medeiros, Campina Grande

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