Tramita na Câmara dos Deputados, o Projeto de Lei nº 4.330 de autoria do deputado Sandro Mabel, do PMDB, que amplia a terceirização para todos os setores da economia e da empresa, visto que atualmente o Tribunal Superior do Trabalho (TST) só aceita a terceirização para atividade-meio e não para atividade-fim. Hoje, a terceirização já é a maior responsável pelo aumento das mortes e dos acidentes de trabalho no Brasil.
Para esclarecer os nossos leitores sobre o que é a terceirização e suas consequências para os trabalhadores, A Verdade entrevistou Vanessa Patriota Fonseca, procuradora do Ministério Público do Trabalho em Pernambuco, autora de uma Ação Civil Pública (ACP) contra a Celpe pelo processo irregular de terceirização visando aprofundar a exploração dos trabalhadores e aumentar os lucros da empresa. A seguir a entrevista com a Dra. Vanessa Fonseca.
A Verdade – O Ministério Público do Trabalho (MPT) em Pernambuco ingressou com uma ação civil pública contra a Celpe. Quais as razões dessa ação?
Vanessa Patriota Fonseca – Nós recebemos a denúncia de terceirização ilícita na Celpe e, concomitantemente, recebemos denúncias de acidentes de trabalho. Então, requisitamos fiscalização na Superintendência Regional de Trabalho e Emprego, que passou um ano fiscalizando a Celpe e as terceirizadas dela. Existe um grupo de combate à fraude lá na Superintendência do Trabalho e esse grupo passou um ano dentro da Celpe e das terceirizadas, fiscalizando. Paralelamente, colhemos vários depoimentos aqui e, realmente, a situação na qual se encontram os trabalhadores é lamentável. Nós percebemos que, entre os anos de 1997 e 2010, enquanto a Celpe expandiu sua rede de usuários consideravelmente, passando de menos de dois milhões para mais de três milhões, o número de empregados diretamente contratados por ela caiu de 3.970 para 1.796, ou seja, a empresa aumentou a oferta de serviços e diminuiu consideravelmente o número de trabalhadores diretamente contratados. Já a quantidade de terceirizados foi praticamente triplicada entre 2000 e 2010. Hoje, a Celpe tem 5.500 terceirizados, aproximadamente. A proporção de terceirizados passou de 30% do total de trabalhadores em 1997 para cerca de 60% em 2000, chegando a ultrapassar 75% de toda a mão de obra em 2010, ou seja, mais de 75% de toda a mão de obra da Celpe hoje é terceirizada. Veja o caso do eletricista, que exerce uma função perigosa, que tem adicional de periculosidade, e que exerce uma atividade essencialmente finalística da empresa. Ora, nessa atividade principal, preponderante, da empresa, hoje apenas 15% são diretamente contratados pela Celpe. O que é que a gente vê da terceirização: a empresa, para se constituir, não pode possuir apenas prédios, máquinas e equipamentos, ela precisa de gente. Então se entende que só é possível terceirizar a atividade para a qual ela não foi constituída. Para a atividade para a qual ela se constituiu, precisa ter empregados próprios. É assim que dispõe a Súmula 331 do Tribunal Superior do Trabalho (TST).
O que é a terceirização?
A terceirização é um instituto da administração pública e a ideia é a seguinte: você tem uma empresa, você se dedica àquilo para que ela foi constituída, aquilo em que você tem know-how; já aquilo que você não conhece você passa para empresas especializadas no assunto, como, por exemplo, uma fábrica de refrigerantes, que vai manter todos os empregados na linha de produção diretamente contratados. Mas, para administrar o refeitório, que vai fornecer alimentação para os seus funcionários, poderá terceirizar, porque ela não foi consituída para fornecer refeições. Assim, seria o mesmo no que diz respeito à Celpe: ela se constituiu para fazer a transmissão de energia elétrica, para ser distribuidora de energia elétrica; então, para isso, precisaria contratar os eletricistas para construção e manutenção de redes, para verificação de consumidores clandestinos, e repassar para terceiros atividades periféricas, para as quais não foi constituída, como por exemplo o caso do refeitório, como citei agora. Mas não foi isso que aconteceu! A Celpe passou a contratar outras empresas para que contratassem os trabalhadores. No entanto, quando há uma terceirização legítima, o que é que acontece é que você repassa aquela atividade para outra empresa, que vai exercer, com o seu know-how, aquela atividade. Não foi esse o caso da Celpe. A Celpe passou a contratação dos trabalhadores para as outras empresas, só que esses trabalhadores continuaram subordinados a ela. Então o que é que a gente verificou: que a Celpe monta as equipes de trabalhadores, interfere na seleção e na dispensa desses trabalhadores terceirizados, fornece os equipamentos de proteção individual, os carros, as escadas, mantém até o controle de horário de trabalho deles. A Superintendência do Trabalho teve acesso a um banco de dados da Celpe onde ela mantém o controle de horário desses terceirizados, sabe a hora em que entram e saem. É um supervisor da Celpe quem diz se o trabalhador pode ter um intervalo para descanso ou não, ou seja, ela manteve o controle, não terceirizou, simplesmente passou a assinatura da carteira para outra pessoa. Com isso, diminuiu o salário, porque, no que diz respeito aos trabalhadores diretamente contratados, terá de cumprir a convenção coletiva do Sindicato dos Urbanitários, que traz uma série de benefícios aos seus associados. Por exemplo: participação nos lucros e resultados, férias com o adicional de 50%, além do terço constitucional, garantia de emprego para quem tem mais de cinco anos de serviço e está perto da aposentadoria, plano de saúde, auxílio-funeral – enfim, uma série de benefícios. Ao repassar a contratação a outras empresas, passa a pagar um salário de sindicato de prestadora de serviços, que é muito menor e que não compreende quase nenhum benefício. Então a Celpe tem um enorme lucro com isso, sonegando o direito desses trabalhadores. E qual foi a consequência maior disso? Acidentes de trabalho.
A terceirização na Celpe aumentou os acidentes de trabalho?
A Superintendência do Trabalho analisou o banco de dados da Celpe onde constam os registros de ponto dos trabalhadores terceirizados, e elaborou um programa de informática para fazer a leitura desse banco de dados e apontar os números. Só para se ter uma ideia, nos eletricistas do setor de prontidão foram constatadas jornadas superiores a dez e a 12 horas em milhares de ocorrências nos anos de 2009 e 2010. Não foram centenas, não: foram milhares! Foi constatado trabalho em jornada de mais de 20 horas, num dia de eletricistas, em 225 ocorrências, em 2010. Foi constatado o trabalho sem concessão de intervalo para refeição ou descanso em 31.172 ocorrências registradas em 2009 e em 49.765 ocorrências em 2010, alguams vezes com jornada superior a 12 horas, sem que a pessoa tivesse direito a uma hora de descanso. Então, esses trabalhadores estão subordinados à Celpe, com jornada excessiva, desenvolvendo atividade periculosa, quer chova, quer faça sol, subindo em postes, carregando pesados equipamentos de proteção individual, e ainda tendo que cumprir meta de produtividade que a companhia estabelece. Assim, eles correm para cumprir uma meta difícil de ser alcançada. O que é que isso causa? Acidentes de trabalho! Há até mesmo um estudo da Fundação Coge, uma entidade da qual fazem parte todas as concessionárias de energia elétrica do país, que mostra, em gráficos, apresentados na ação civil pública com que ingressamos, os dados de acidentes de trabalho na Celpe. O índice desses acidentes é três vezes maior entre os trabalhadores contratados por empresas interpostas (ou seja, terceirizados) do que entre aqueles diretamente contratados pela Celpe. E, para piorar o quadro, quando se compara a gravidade dos acidentes, nota-se que os mais graves ocorrem com maior frequência entre os terceirizados. A taxa de gravidade relativa aos acidentes ocorridos com empregados da Celpe não chega a 200, numa escala, ao passo que a a mesma taxa relativa aos acidentes ocorridos com terceirizados ultrapassa 3.000. Daí comprendermos que tal situação da terceirização seja ilícita, uma vez que a Celpe repassou para terceiros a sua atividade finalística, o que burla até mesmo o contrato de concessão, pois quando ela firmou um contrato de concessão com a União, foi para que fornecesse diretamente o serviço, o que não está fazendo, assim burlando até o processo licitatório. Terceiriza quando não é possível; precariza, diminuindo o salário, diminuindo benefícios; aumenta jornada e não está preocupada com isso porque os trabalhadores estão registrados por outra pessoa jurídica; e, por fim, aumenta o número de acidentes de trabalho. E, para piorar ainda mais a situação, a Superintendência ainda apontou condições análogas às de escravos a que são submetidos os que trabalham na expansão de redes no interior. Trabalhadores que passavam até 26 dias fora de casa a trabalho, dormindo em alojamentos sem janelas, sem colchões ou com colchões mofados, com fiação elétrica exposta e sem local para armazenamento de alimentos –para em seguida receber quatro dias de folga.
Por que o trabalho terceirizado tem cresceu tanto na Celpe? Isso tem relação também com a qualidade do serviço?
Com a privatização da empresa, foi expandido enormemente esse processo de terceirização. Sabemos também que, nesse período, houve uma considerável elevação do valor da tarifa de energia elétrica. Mas não é possível dizer se houve ou não melhora, porque sabemos que a Celpe nesse período posterior à privatização expandiu a atuação e o número de consumidores, mas, ao mesmo tempo, houve uma elevação drástica da tarifa. Portanto, essa é uma análise que não cabe ao Ministério Público do Trabalho fazer, para afirmar se houve ou não melhora do serviço prestado. Agora, em relação às condições de trabalho, certamente houve uma degradação total, uma piora considerável. E por que isso? No meu entender, pelo lucro, pelo egoísmo capitalista da empresa de sonegar direitos trabalhistas para obter um lucro maior. Ela reduz o valor do salário e reduz o valor dos benefícios, demanda uma quantidade maior de horas de jornada de trabalho e essa busca incessante pela produtividade numa atividade que é perigosa. Hoje as decisões judiciais têm sido no sentido contrário a se admitir meta de produtividade em atividade insalubre ou perigosa. Por exemplo, já tem até uma lei de motoboy que veda estabelecer produtividade para esse profissional, porque o que acontece muito – e a gente sabe que, embora exista a lei, há empresas que a descumprem – é que o motoboy tem que entregar a pizza e voltar em um determinado espaço de tempo. Isso, em uma atividade perigosa, gera acidentes de trânsito, acidente de trabalho no caso. Na cana-de-açúcar já há atualmente muitas decisões também contrárias à meta de produtividade porque é uma atividade extremamente desgastante. A atividade perigosa como essa da Celpe, em que já foram constatadas a terceirização ilícita, a jornada excessiva, o trabalho em condições análogas às de escravo, o descumprimento de normas de segurança e de saúde. E já foi encontrado eletricista analfabeto, o que é proibido, porque eletricista não é só aquele que conserta uma tomada na sua casa, o profissional da Celpe tem que entender e ler aqueles quadros todos. A Norma Regulamentadora não permite. Era terceirizado, mas a Celpe tem conhecimento porque tem cadastro de tudo. Foi denunciado ainda o fato de ajudante de eletricista a substituir o eletricista, o que também não pode ser, porque a formação é outra. Foi constatada a ausência de equipamento de proteção individual adequado, enfim. Os veículos das terceirizadas, apontou-se, eram veículos na maioria das vezes fornecidos pela Celpe, só que os melhores estavam com os trabalhadores diretamente contratados pela empresa, enquato os mais desgastados, com pneus carecas e bancos com molas expostas e rasgados, esses ficavam com as terceirizadas. É basicamente isso. E aí tivemos a primeira audiência, e a sentença deve sair por esses dias.
Quem pode apresentar denúncias ao MPT e como contar com a atuação do órgão?
Qualquer pessoa pode apresentar denúncia – até pode pedir que a denúncia seja resguardada, que os dados do denunciante sejam preservados sob sigilo. Então, é qualquer pessoa, não precisa ser o próprio trabalhador. E, em relação ao tema, pode ser qualquer descumprimento das normas trabalhistas que afete o interesse da coletividade. Porque o Ministério Público do Trabalho não atua na questão individual; quando há um prejuízo individual a um trabalhador, ele poderá ter a defesa do sindicato, ele próprio ajuizar uma ação na Justiça ou esperar a fiscalização do Ministério Público do Trabalho. O Ministério Público do Trabalho atua quando há possível lesão a direito coletivo. Por exemplo, se uma empresa está com vazamento de amônia e esse vazamento pode causar prejuízo à saúde de vários trabalhadores. Ou quando a empresa está sem pagar os salários dos empregados, o que então configura uma questão do ponto de vista coletivo. Aí, sim, o Ministério Público do Trabalho atua.
Thiago Santos, Recife